9 de fevereiro de 2006

Cidade Baixa

Walter Benjamim, mais famoso representante da escola de Frankfurt, diz em seu A Era da Reprodutibilidade Técnica que a áurea do original é o que diferenciava a obra de sua mera reprodução. Seguindo essa linha, Cidade Baixa nada mais é que a reprodução cuidadosa de uma série de referências famosas. O filme é transgressor, marginal e até chocante em alguns momentos. Tem Zé Dumont em uma ponta inspirada e um trio carismático de protagonistas. Cidade baixa faz ainda um retrato cru dos miseráveis e tem um triângulo amoroso capitaneado por uma mini Sônia Braga. Assim, o filme tinha tudo para ser a referência na retomada do cinema marginal brasileiro, mas não o é, justamente, por não ter um frame de originalidade. O cinema marginal e a boca do lixo, passando até pelo superestimado cinema novo, já haviam contado esta história antes e com mais propriedade.

Um foco visceral na vida daqueles a quem os sociólogos chamam de invisíveis sociais, dos que estão literalmente a margem do convívio em sociedade e que vivem de pequenos crimes ou de bicos. Desde o neo-realismo italiano do pós-guerra vemos isso. Nelson Pereira dos Santos abordou o assunto de maneira ímpar com Rio 40 Graus, isso lá em 1955. O amor e o sexo como formas de redenção, a única esperança na vida miserável é poder ter alguém sob controle e se dar a alguém. Bruno Barreto, esse mesmo que hoje dirige enlatados nacionais e importados, abordou com propriedade esse tema no excelente representante do cinema marginal Amor Bandido.

Cinema cru, câmara na mão e close nos olhos apenas parece original pra quem nunca ouviu falar do delicioso cinema camp feito pelos paulistas da boca do lixo e pelos europeus sem dinheiro nos anos 70. Triângulo amoroso, com amigos-irmãos nutrindo aos poucos um ódio mortal não só pelo objeto de desejo, mas também por medo de perder o companheiro e que desta forma caminham inevitavelmente para o final trágico ou não tão trágico assim. Tudo bem, ninguém nunca viu isso em novela!

Apesar de não ser original, o filme é feliz em seu aspecto técnico. Tudo é praticamente impecável. A parte pobre e arquitetonicamente bela de Salvador tem aquele tom documental indispensável ao sucesso da produção e os atores, praticamente todos, estão muito bem. Além do já mencionado Zé Dummont, o Dois Mundos, o ator é homônimo, merece destaque – ele faz aquele tipo mal caráter, oportunista e explorador, com um toque de humor que rouba todas as cenas em que dar o da graça. O roteiro escrito pelo diretor Sérgio Machado e por Karim Ainouis, este trabalhou com Lázaro Ramos em Madame Satã, apesar da falta de originalidade tem boas ”sacações”, como a briga dos galos branco e negro profetizando o final do filme, logo no início da projeção. Os elementos da trama - sangue, suor e lágrimas – expressos em uma boa fotografia estão na medida certa. A música, no entanto, não é deslumbrante, e se não faz feio na tentativa de dar o toque baiano-africano por meio de muita percussão não compromete o resultado.

A dupla central, formada pelos cúmplices Lázaro Ramos e Wagner Moura, esbanja carisma e tem uma autenticidade que só deveria vir mesmo de dois amigos. Engraçado também é ver como a dupla tem necessidade de manter uma imagem meio outsider, apesar da imagem dos rapazes já estar inegavelmente associada a constelação global. A sobrinha de Sônia Braga, Alice, faz uma Karinna (com dois “n”) de caracterização perfeita. Ela usa muito vermelho, o que ajuda a ressaltar a sensualidade barata e os movimentos são de uma prostituta de cabaré de beira de estrada. Enfim, Cidade Baixa é acima de regular, mas definitivamente você já assistiu a algo, no mínimo parecido, antes.

Ponto Alto – sexo selvagem entre o personagem de Lázaro Ramos e Alice Braga em uma viela escura de Salvador.

Ponto Baixo – a participação de Zé Dumont é pequena demais!