21 de outubro de 2006

Saló - 120 Dias em Sodoma


Um dos filmes mais chocantes de todos os tempos. Essa alcunha pode até parecer exagerada, mas essa crítica cinematográfica aos poderes dominantes da Itália (o fascismo e seus protetores seria mais claro) em uma catarse explícita e incômoda vai muito além do campo das idéias, o impacto também é sentido no estômago. Realizado em 1975, por um agressivo Pier Paolo Passolini, Saló faz alegoria com a estória de vários jovens italianos que na Itália fascista de 1944 sofrem o diabo nas mãos de quatro poderosos. O Duque representando a nobreza, o Bispo como a igreja, o Presidente e a personificação do poder político e o Magistrado como a corrupção e a parcialidade da justiça. Senti falta de um jornalista no controle do poder midiático.

Voltamos ao filme, os jovens são recrutados em várias vilas e lugares inóspitos e são submetidos a uma triagem ridícula. Uma garota é dispensada por faltar um dente, comparação óbvia com a escolha de um animal. Outro tenta fugir e é metralhado no caminho. O fato é que dezesseis jovens são isolados em uma mansão e passarão pelos três círculos: Círculo das Taras (ou manias), Círculo da Merda e Círculo do Sangue. Baseado na obra do caretinha Marquês de Sade, o que se ver a seguir é um show de horrores.

Submissão, sexo e muita violência. Humilhação como jamais o cinema mostrou. O círculo da merda é o mais repugnante. Em uma cena, um dos senhores solta sua merda no chão e obriga um dos confinados a comer o excremento com uma colher. O algoz grita mangiare e isso fica na cabeça. Impressionante.

Outro momento forte, já no início do círculo da dor, é uma armadilha que um dos senhores faz ao colocar pregos em um tipo de angu e oferecer a um incauto faminto. Impossível não ver essa cena entre os dedos! Como não podia ser diferente, algumas vítimas gostam da submissão. O banquete em que um jovem demonstra carinho e cumplicidade com o Bispo é de dar náuseas (não só pela escatologia, mas pela aceitação da condição).

Pasolini não se aventurou apenas como cineasta, mas também foi poeta e escritor. Contestador, revolucionário, comunista e homossexual - reza a lenda que foi morto por um garoto de programa (um dos atores de Saló), mas há uma versão de que seu assassinato teve motivação política. Um homem genial e cheio de contradições que entregou aqui sua obra mais contundente. O espectador pode até não gostar, mas não vai conseguir esquecer Saló. Isso, com certeza, não vai.

Ponto Alto: a ideologia pregada pelo filme soa muito em voga neste Brasil que, como alternativa às limitações da esquerda, opta por um conservadorismo assustador.

Ponto Baixo: o final aberto. Tudo bem, não haveria outra maneira de fechar o filme, mas de forma tão abrupta fica a impressão que não foi finalizado como deveria.

OBS: Post dedicado ao amigo, que, por acaso, é um dos melhores guitarristas de Brasília, Rodrigo Karashima.

17 de outubro de 2006

Dead Man


Jim Jamursch. Os exagerados falam em papa do alternativo e outras besteiras, mas os rótulos são exagerados. Vi apenas uns três filmes do cara, mas digo que Jamursch é bom por conta tão somente do maravilhoso Dead Man. Um faroeste lisérgico estrelado por Johnny Depp que é cinema de primeira qualidade.

Depp, dando show, faz William Blake. Isso mesmo, homônimo do famoso poeta inglês. O cara é um tremendo desajeitado que acaba de chegar à cidade de Machin, no extremo oeste americano, com a promessa de trabalhar como contador. Mas é cortejado pela mulher errada e acaba sendo perseguido pelo todo-poderoso do local, John Dickson (Robert Mitchum). Tendo de fugir, ele encontra o índio Nobody (Gary Farmer), que acha que Blake é mesmo o poeta. O índio é uma espécie de Timothy Leary do velho oeste e propõe um, digamos, conceito de autodescoberta para o novo amigo. Os dois viram parceiros e partem numa jornada reflexiva, perigosa e divertida.

Muita gente propõe uma série de indagações filosóficas. O que eu fiz foi me preocupar com a diversão e me desliguei dessas reflexões. Apesar de ter deixado de lado todo o potencial “interpretativo” de Dead Man, fiquei maravilhado com a criatividade da produção que vai da fotografia em preto e branco à edição eficiente. O elenco é um primor e conta com gente do calibre do sempre bacana Crispin Glover e do malucão Iggy Pop. Pra finalizar, a música fica a cargo de um inspirado Neil Young. Insuperável!

Ponto Alto: Nobody é uma figura. A composição do subestimado Gare Farmer é muito boa!

Ponto Baixo: não gostei de algumas “viagens” com sobreposição de imagens. Lisérgico até demais.

7 de outubro de 2006

Baise-Moi


A feminista francesa Simone de Beauvoir ficaria ruborizada com este libelo ao feminismo feito por suas conterrâneas em 2000. Produção independente européia, escrita, dirigida e estrelada por mulheres. Mulheres inteligentes e furiosas, diga-se de passagem. O filme foi até bem recebido em alguns festivais menos expressivos, mas a julgar pela agressividade da coisa, a recepção ficou aquém do esperado, o que jogou a produção no ostracismo. Injustiça, merecia melhor sorte. As interpretações são dignas de alunos do primário (todos os atores são péssimos), a fotografia em câmera digital não é nenhum primor e as cenas de violência são confusas. Mas Baise-Moi merece sim ser descoberto, uma vez que o saldo, apesar de tantos baixos, não é negativo.

Obra praticamente autoral de Virginie Despentes - escreveu o roteiro e dirigiu, em parceria com uma amiga - e, acredito eu, o cerne estava no conteúdo e não na forma, mas, se o projeto for lembrado algum dia, será pela agressividade das imagens, nunca pela mensagem. Manu (Raffaela Anderson) é uma imigrante (ou filha de imigrantes) que é estuprada, e se junta à belíssima prostitua Nadine (Karen Bach), para sair pela França fazendo valer uma justiça torta. Apesar de um roubo a uma mulher no início, as vítimas são mesmo os homens. E aí, é Deus nos acuda. Além da famosa seqüência em que um pervertido leva um tiro no ânus, uma cena chama a atenção: elas encontram dois rapazes e vão para o quarto de hotel, um é grosseiro e vai embora; as duas, então, dividem o mesmo garotão em uma inversão óbvia de papéis. Boa sacada, mas nada inovadora! No caso de Baise-Moi a inovação fica mesmo por conta do excesso de drogas, da violência desmedida e do sexo explícito.

As protagonistas, como já mencionado, são atrizes ruins. Mas é inegável que conferem autenticidade ao projeto. Raffaela Anderson e Karen Bach antes de se aventurarem aqui se dedicavam a filmes pornôs. Isto acaba sendo um ponto positivo, pois elas não passam da mais pura representação da submissão feminina. Ponto positivo para nossas queridas francesas. Detalhe – a charmosa Bach cometeu suicídio em 2005.

No final das contas, fica a sensação de que foi uma excelente idéia, mas conduzida de maneira um tanto equivocada. No Brasil, difícil encontrar quem tenha gostado do filme, já li e ouvi comentários que criticam desde detalhes (como o estupro com camisinha) à própria proposta do filme, mas é inegável que a coragem em abordar um tema tão complexo e de maneira tão ousada tenha causado alguma comoção. A propósito, Baise-Moi quer dizer foda-me. Nada mais apropriado!

Ponto Alto: como forma de alfinetar os homens, cenas do mais puro prazer fetichista. Confesso que cai como um patinho, pois ver a bela Nadine vestida apenas de lingerie, com discman preso na cinta-liga e brincando com sua pistola de mira laser é um prazer visual inegável.

Ponto Baixo: Despentes usou tantas vezes aquela retórica do homem ser movido pelos hormônios, não pensar nas conseqüências dos atos e blá-blá-blá, que realmente não soou convincente.