19 de maio de 2007

A Hora da Zona Morta

Um dos poucos filmes baseados em obra de Stephen King que conseguem superar a mediocridade literária do escritor e fazer cinema de qualidade. Neste caso, o mérito recai sobre os ombros do nosso bizarro canadense David Cronenberg, que faz um filme acertado em quase todos os aspectos. O cineasta segue a cartilha de coisas estranhas acontecendo com gente comum em um ambiente frio e desconfortável. O lugar, acho que é Colorado, funciona como um personagem soturno e branco, mas jamais aconchegante. As pessoas são aquelas branquelas do início dos anos 1980 com óculos grandes e roupas de inverno sem cor. Enfim, Cronenber na veia.

Todos esses fatores constroem o clima ideal para a estória do professor de literatura Johnny Smith (Christopher Walken). Ele é um cidadão super do bem e após um acidente, que o deixa cinco anos em coma, volta ao convívio social com fortes poderes premonitórios. Ainda atormentado pelo novo dom, que não sabe se é uma bênção ou uma maldição, Johnny ajuda a salvar a filha de uma enfermeira, desenterra fantasmas do passado de seu médico e tira um sarro com um jornalista folgado. Chega então o momento de fazer algo maior e, após certa relutância, ajuda o delegado da cidade vizinha, interpretado por Tom Skerritt, a capturar um perigoso serial killer. O desfecho desta seqüência é um dos pontos altos do filme. No meio de tanta novidade, Johnny perde a mãe e volta a se relacionar com a namorada de antes do acidente, Sarah (Brooke Adams); o detalhe é que a garota está casada e tem um filho. Parece impossível, mas o relacionamento entre o casal não é canalhice.

As visões são um processo desgastante para Johnny. O cara já é branco, e, devido a exaustão por conta dos novos poderes, fica praticamente transparente, até o cabelo parece sem cor. Assim, ele busca se isolar e passa a tentar a ganhar a vida dando aulas em seu novo refúgio. Engraçado, as pessoas mandam cartas para o cara e parece não ser muito difícil localizá-lo, mas mesmo assim ele jura que está isolado. Por fim, o sacrifício depois do contato com um inescrupuloso candidato ao senado, Greg Stillson (Martin Sheen, destilando canastrice). Aliás, o exagero no retrato de um político tão pilantra pode parecer inverossímil em princípio, mas faz sentido pelo caráter fantasioso da obra. Aliás, retrato de homem público safado é caso de documentário quando falamos de Brasil.

A Hora da Zona Morta é um filme forte, bonito e que, a despeito de várias inconsistências, soube envelhecer como uma das melhores obras derivadas desta agência de literatura barata chamada Stephen King. Na verdade, King tem uma criatividade realmente impressionante para bolar personagens e situações estranhas, entretanto suas obras dariam, no máximo, uma crônica e nunca um romance. Mesmo assim, ele as estende com uma técnica literária ruim por centenas de página. Aí fica difícil! Mesmo assim, as idéias são mesmo, na maioria das vezes, intrigantes... daí o sem número de adaptações para a TV e o cinema. Neste A Hora da Zona Morte, temos uma produção adulta e amarga em que o processo de amadurecimento de um cineasta hermético como Cronenberg fica evidente. Nostalgia pura para quem está arranhando os 30 anos.!

Ponto Alto: A violência raras vezes é explícita, mas aquele incômodo psicológico que perpassa toda a projeção deixa o espectador inseguro e assustado.

Ponto Baixo: Deu a impressão que trechos do livro foram picotados no roteiro de Jeffrey Boam. São vários momentos perdidos ou que pouco acrescentam, como a relação de Johnny com o garoto Chris (Simon Craig). Várias pontas e situações ficaram soltas. Talvez seja problema de edição, um dos pontos fracos de Cronenberg.

12 de maio de 2007

Calígula

Malcom Mcdowell capitaneando o elenco, produção a cargo do genérico de Hugh Hefner e dono da Penthouse, Bob Guccione, roteiro do aclamado Gore Vidal e direção nas mãos do maluco tarado italiano Tinto Brass. Produção rodada na Europa com gastos estratosféricos. O resultado tinha tudo pra ser um sucesso arrebatador, mas aconteceu justamente o contrário. O filme foi um fiasco comercial. Às favas com esse detalhe; o que importa é que estamos diante de um clássico explotation, recheado de artistas consagrados em situações constrangedoras. O que é aquela cena com Peter O’Toole? Sem comentários. O caso é que a despeito das frustrações de uma produção que não deu o retorno esperado, estamos diante de um filme ousado, divertido e interessante. Sinceramente, merecia melhor sorte.

Como todos sabemos, Calígula conta a estória de um dos mais ensandecidos imperadores romanos. Ele armou para chegar ao poder e fez de tudo para se manter lá, abafando com veemência qualquer tentativa de golpe. Até aí, tudo normal. O lance é que o cara era um hedonista egocêntrico capaz das mais bizarras excentricidades. Algumas mostradas no filme: apaixonado pela própria irmã, dormiu ao lado de um cavalo, tirou a virgindade de uma noiva e sodomizou o noivo na noite de núpcias do casal, ridicularizava constantemente os soldados do seu exército, promoveu uma orgia com as mulheres dos senadores e ao se fazer passar por um plebeu acabou preso e currado, e por aí vai. Um cardápio realmente sugestivo.

Malcom Mcdowell dá um show ao retratar com escárnio a loucura de uma figura tão poderosa. Discuto com um amigo que este é o melhor papel da carreira do ator inglês, inclusive melhor que o badalado Alex de Laranja Mecânica. A interpretação definitiva de Mcdowell. Ele é (ou era) maior que o próprio filme. O que não acontece sob a batuta de Kubrick. A despeito do talento do elenco, a maior polêmica de Calígula gira em torno das intervenções de Guccione. Disseram que ele usou a produção para mostrar as generosas curvas das modelos de sua revista e que inseriu cenas de sexo na hora da edição. Muito barulho por pouca coisa.

Outros fatos pitorescos contribuíram para a fama de maldita da produção. Gore Vidal, por exemplo, escreveu o roteiro, mas hoje renega o filme. Ele afirma que destruíram o que havia escrito e toda aquela conversa mole. Tô nem aí para Vidal, mas me incomoda o fato de Tinto Brass não ter ficado à vontade para comandar a produção. O filme teve custos muito altos e queriam apenas alguém que não complicasse. Vale lembrar que Wolfgang Petersen não era famoso na época! Desperdiçaram a chance de ver nosso querido italiano destilar seu talento fetichista. Sacanearam com Brass, e por isso confesso que é impossível não rir da pretensão canhestra da reconstituição de época. Lembra aqueles filmes sobre a vida de Jesus Cristo que passam na TV aberta durante a semana santa? Mesma coisa. Apesar de tantos erros, Calígula tem fortes momentos de violência (a máquina de arrancar cabeças é um delírio interessante) e várias cenas de nudez e sexo. Não deu certo, mas os fãs do explotation agradecem.

Ponto Alto: A interpretação irretocável de Helen Mirren como Caesonia. Pois é, a rainha Elisabeth, com toda a sua carga shakespeariana de teatro inglês, emprestou seu irrefutável talento dramático à Calígula.

Ponto Baixo: Tudo bem Guccione dirigir cenas de sexo, mas uma cena lésbica é tão gratuita e fora do contexto que chega a ser patético. Ridículo, para dizer o mínimo.

3 de maio de 2007

Inverno de Sangue em Veneza


Quando falamos de cinema e nos referimos a palavra cult, deveria haver uma foto de Donald Sutherland e Julie Christie em Don’t Look Now. Filmaço obscuro dirigido por Nicolas Roeg em 1973. Por que o filme é tão cult? Simples – trata-se de uma produção tão acertada que simplesmente criou um conceito quando falamos do cinema de suspense. Vários elementos viraram referências e é uma obra tão complexa em sua simplicidade (essa foi forte) que não podemos enquadrá-lo em um gênero cinematográfico simplesmente. Seria o mesmo que limitar o potencial de O Poderoso Chefão dizendo que a saga Corleone é um filme policial.

Em Don’t Look Now acompanhamos a luta do casal John e Laura Baxter em superar a morte da filha. Eles são ingleses, mas estão em Veneza, onde ele está trabalhando como restaurador de uma igreja. O primeiro contato estranho ocorre com uma dupla de irmãs interioranas em um restaurante. Uma das irmãs é cega e diz ter poderes mediúnicos e que teria visto a filha do casal sorridente ao lado deles. Laura fica deslumbrada e vai querer saber mais sobre o assunto. A trama vai evoluindo como um suspense sobrenatural sob a batuta de um cético. Coisa de profissional. Surgem outros personagens, e a perturbadora visão de uma garota de capa vermelha (a filha morreu afogada em um lago com um impermeável vermelho) perpassa toda a trama e intriga não só os personagens. O espectador é absorvido e acaba por compartilhar com o casal a angústia por uma perda tão significativa.

A trama é envolvente, mas os aspectos técnicos são primorosos. A música se encaixa perfeitamente ao roteiro, isso sem dizer que são composições belíssimas. E uma Veneza cinza e compacta, cheia de vielas e pequenos labirintos, serve para encher a tela em uma fotografia de tirar o fôlego. O final é instigante, entretanto confesso que fiquei um pouco decepcionado neste momento. Isso é detalhe em um filme feito muito mais de acertos, escolhas perfeitas como a empatia de Sutherland e Christie que fazem de Inverno de Sangue em Veneza um item obrigatório na coleção de quem aprecia cinema de verdade. Não por acaso, objeto de tantas referências.

Ponto Alto: a cena de sexo entre o casal principal, no melhor estilo fusão dos corpos, é de arrepiar.

Ponto Baixo: o início do filme quando vemos a angústia do pai em tentar salvar a vida da filha dá nó na garganta mesmo no mais bruto dos cafajestes. A cena é estupenda, mas a transição com o grito agudo da mãe ao ver a filha morta é um pecado. Seria bom ver Christie destilar talento neste momento tão intenso.