27 de dezembro de 2006

Madame Satã


Filme brasileiro de verdade não tem de ter uma constelação global no elenco. Filme brasileiro de verdade não precisa ser baseado em peça de teatro famosa ou em variações das crônicas de Luís Fernando Veríssimo. Filme brasileiro de verdade tem de retratar com seriedade e amor a vida dos excluídos da nossa terra. Filme brasileiro de verdade não deve ter vergonha de mostrar cenas de sexo e violência. Filme brasileiro de verdade deve causar reflexão e te deixar meia hora na cadeira depois que os créditos subiram. E por esses e outros motivos que Madame Satã é uma das melhores surpresas dos últimos tempos.

Dirigido e escrito com competência e muito bom gosto pelo novato e talentoso Karim Aïnouz e fotografado pelo sempre irretocável Walter Carvalho, o filme se crava como um clássico moderno da nossa filmografia. Difícil achar algo fora do lugar na história que conta o início da trajetória do mítico João Francisco dos Santos na boêmia carioca. Direção de arte e figurino perfeitos. Elenco talentoso e dedicado. Em suma, o filme é de emocionar; simplesmente imperdível. Que bom ver novamente o verdadeiro cinema brasileiro nas telas.

Ponto Alto: bom demais ver a nossa eterna Macabéa na tela. Marcélia Cartaxo dá um show como a meiga Laurita.

Ponto Baixo: fica o gostinho de quero mais. Queria um pouco da vida de madame satã depois do “sucesso”. Sei que a intenção era mesmo mostrar a história pré-mito, mas fica o registro.

17 de dezembro de 2006

Barbarella



Lembra do clássico Cavalgada de Roberto Carlos? Pois reza a lenda que a música representa um ato sexual. Na hora do orgasmo, o rei toma fôlego e manda: “...as estrelas mudam de lugar... chegam mais perto só pra ver...”. Pois a erótica ficção-científica Barbarella também segue, em linhas gerais, a cadência de uma transa. Filmado em 1968 pelo excêntrico francês Roger Vadim, o filme baseado em uma HQ de Jean Claude Forest conta a aventura de uma heroína intergaláctica em busca de manter o status quo de paz e amor que impera no universo, isso lá pelos idos de um futuro muito distante.

Na verdade, o filme funciona como um libelo futurista da geração hippie, mas não deixa de lado um certo viés político. Mostra com preciosismo toda a pregação do amor livre e do pacifismo sem deixar de retratar a inquietação da época. Barbarella virou cult e criou uma série de referências pop com seu futurismo retrô. Verdade que o futuro idealizado por Vadim e cia é mesmo retrô demais, mesmo assim Barbarella continua um clássico.

A abertura com a moça se despindo das roupas espaciais ao som de Barbarella é um prazer visual. Feitas as apresentações, a agente espacial recebe a missão de ir atrás do cientista terráqueo Duran Duran que desapareceu na região de Tau Ceti. O jovem cientista é o criador do polêmico raio positrônico, que pode por fim ao tempo de paz que reina no universo. Pois bem, a espaçonave da garota cai no 16° planeta do sistema Tau Ceti e, a partir daí, ela se mete em várias aventuras com os tipos mais exóticos. Há as feiosas crianças gêmeas e suas perigosas bonecas, o estranho trenó movido a uma espécie de arraia com chifres e o caçador glacial Mark Hent vivido por Ugo Tognazzi (que propõe uma forma de amor mais física a heroína). Ela ainda encontra o anjo cego Pygar (John Phillip Law) e o Professor Ping (Marcel Marceau) no lugar dos excluídos, o labirinto da cidade da noite.
Barbarella chega, então, a Sogo - Cidade da Noite -, governada pelo grande tirano. Lá, acaba encontrando as forças revolucionárias comandadas por Dildano (David Heminngs), uma alusão ao movimento comunista. O orgasmo da trama fica para a Câmara dos Sonhos, com o Mathmos (energia viva em forma líquida) fazendo a alegoria mais óbvia possível.

Produzido por Dino de Laurentis, Barbarella é mesmo um filme folclórico que absorveu perfeitamente o espírito de inquietação do final dos anos 1960. Legal observar que a hippie intergaláctica passa por tudo sem nunca ter a real noção da situação. Ela tem uma missão, mas no trajeto vai colecionando e descartando amantes com a mesma cara de boba de sempre. Ao espectador cabe ter reverência, pois é de emocionar perceber um elenco de peso envolvido em uma brincadeira tão deliciosa.

Ponto Alto: Jane Fonda é mesmo linda. Faz jus a toda a badalação em torno de seu nome. Equilibra perfeitamente malícia e ingenuidade. Um assombro!

Ponto Baixo: Os efeitos especiais, em tom de brincadeira, faziam representações ousadas para a época. Hoje, a coisa fica mais para o lado do constrangimento, principalmente nas “tomadas” espaciais.

11 de dezembro de 2006

Fome de Viver


Imagine uma lúdica cena de amor entre uma jovem Susan Sarandon e uma madura e charmosérrima Catherine Deneuve em um apartamento de Nova York com direito a cortinas esvoaçando. Agora, pense em David Bowie como um velho decrépito em um filme de vampiro com direito a musiquinha gótica tipo Bauhaus rolando a todo o momento. Tudo isso embalado pelo clima brega dos anos 1980 e dirigido com veia pop-chique por um novato Tony Scott. Pois é, estamos falando do estonteante Fome de Viver, realizando em 1983 e que contou com essa turma de peso.

O filme conta a trajetória de Miriam Blaylock (Deneuve), uma vampira que coleciona amantes ao longo do tempo. Por uma razão que não é pormenorizada (parece que é quando ela quer trocar de companhia) seus amantes-vampiros envelhecem rapidamente. Neste caso, estamos com John (David Bowie) que entrou em um processo irreversível e, por conta disso, acaba procurando a geriatra-cientista Sarah Roberts (Susan Saradon). O problema é que o processo é furioso e John praticamente fica sem escapatória. Resultado, impressionada com a vivacidade da médica, Miriam “isola” o parceiro, pois acaba de encontrar uma nova vítima.

Fome de Viver propõe uma indagação interessante ao retratar com respeito a questão do envelhecimento. As limitações mentais e, sobretudo, físicas da velhice são expostas e analisadas com seriedade. Impossível o espectador não fazer uma reflexão sobre as conseqüências deste processo irreversível. Indagações feitas com respeito e coerência.

Apesar de datado com toda aquela pompa brega oitentista que impregna cada frame, a produção tem um bom nível de sofisticação. Culpa dos vampiros charmosos e refinados, que tocam música clássica, têm figurino impecável e matam com muito estilo. Toda imagem tem estilo (até demais), como pombos voando pelo apartamento na contraluz. Legal ver um clichê ainda em fase de formação – que o digam Adrian Lyne e John Woo.

O ritmo da narrativa também tem uma cadência diferenciada, pois é mais lento e contemplativo que os filmes que Scott fez a posteriori. Na minha opinião, esse é um dos pontos fortes da produção. Em suma, é para ser visto e revisto com todo o carinho que se pede a uma produção que apesar do climão oitentista resistiu ao tempo. Isso que é envelhecer com dignidade.

Ponto Alto: a maquiagem é um show. Isso fica claro no envelhecimento acelerado do personagem de Bowie.

Ponto Baixo: a edição modernosa de algumas seqüências. Uma sério de cortes frenéticos e forçados.