31 de março de 2007

Zombie


Esqueça o Rosebud em Cidadão Kane. Esqueça Marlon Brandon recebendo os convidados na festa do casamento da filha em O Poderoso Chefão. Esqueça Anita Ekberg na Fontana de Trevi em A Doce Vida. Esqueça a imitada seqüência da escadaria em Encouraçado Potemkin. Esqueça o corte no olho em Cão Andaluzia. A GRANDE cena da história do cinema é a briga entre um tubarão e um zumbi em Zombie, dirigido pelo nosso querido Lucio Fulci em 1979. Uma criatividade inigualável, nem tão imitada e acusada de pouco original, mas de uma plástica e de uma satisfação ímpar para o espectador. Coisa de gênio!

Brincadeiras à parte, essa obra-prima dos pobres (eu entro aqui) é um dos momentos altos do cinema de baixo orçamento italiano. Essa história de copiar os famosos filmes americanos em baratas produções italianos foi mesmo a menina dos olhos da turma durante o final dos anos 1970 e toda a década seguinte. As estórias eram chupadas de produções famosas americanas, mas misturadas e produzidas com um oportunismo tão carinhoso que era impossível não se deixar levar pelas belas imagens e músicas caprichadas, afinal italianos sempre dão um toque especial quando falamos de estética.

Aqui, acompanhamos as peripécias de um casal em busca de uma boa história. Ele, Peter (Ian McCulloch), é jornalista e depois da bronca do chefe é capaz de qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, por uma boa reportagem. A motivação de Ann (Tisa Farrow), para se aventurar por uma ilha no meio do nada é mais “nobre” – quer saber o paradeiro do pai que era dono do barco que atracou misteriosamente em Nova Iorque. Zumbis na cidade, uma correria aqui, uma carta encontrada ali, os dois vão parar em um paraíso tropical e encontram um casal que topa ser guia dos aventureiros atrás da ilha Matoul. Lugar paradisíaco onde um estranho médico, interpretado por Richard Johnson, realiza experiências a fim de descobrir por que os mortos voltam à vida naquele lugar.

Pausa para a famosa cena do tubarão supramencionada na qual também somos brindados com o topless maravilhoso da bela desconhecida Auretta Gay. Eles então chegam à ilha, justamente no momento em que a coisa degringola com os experimentos saindo do controle e a zumbizada a solta por aí. No meio da correria, a mulher do tal médico é atacada ao sair do banho e se tranca no armário. Pausa para a famosa cena da imensa flerpa no olho. Fulci sabia mesmo usar o “olho” como poucos. O final é meio triste e não oferece muita alternativa para a humanidade, ou, ao menos, para Nova Iorque. Uma série de clichês bem construídos, com uma música maravilhosa e um clima sufocante. Um dos grandes do NOSSO tipo de cinema!

Ponto Alto: a ponta hithcockiana do diretor como o editor do jornal.

Ponto Baixo: o roteiro é simples demais e funciona como uma desculpa para destilar talento. Realmente não se é um ponto negativo; afinal, quem precisa de traminhas cheias de idas e vindas?

18 de março de 2007

A Lei do Desejo


O melhor filme de Almodóvar, por acaso também é sua obra mais gay. Caramba, isso é mesmo uma proeza, levando-se em conta a genialidade do cineasta e sua insistência em retratar o tema. Aqui, temos a estória do inteligente diretor de cinema e teatro Pablo Quintero (Eusebio Poncela) e de sua irmã transexual Tina (Carmen Maura). Com a partida do jovem amante para o litoral, o cara acaba cedendo aos encantos do prestativo Antonio Benitez (Antonio Banderas). A relação entre o cineasta e seu admirador vai se tornando doentia. Pronto, as cartas estão na mesa e com o assassinato de um personagem o filme evolui, com muito bom humor, para um clímax grandioso.

O fator que mais se destaca na produção é a bem sucedida e peculiar mania de dar problemas comuns, trazer sentimentos comuns para personagens, digamos, diferentes. Neste caso, a hilária travesti Tina interpretada com maestria por Carmen Maura. Almodóvar adora abordar a questão da sexualidade e da figuração do gênero, por isso trata com tanto respeito e carinho estes personagens. Ela é muito mais que um travesti com uma história triste no passado, é uma pessoa frustrada que busca um futuro melhor ao lado da filha Ada (Manuela Velasco). Ainda sobra tempo para ser uma religiosa devota, com constantes pedidos às santas. Uma contradição marcada, mas deliciosamente verossímil. Na verdade, estranhas são a pessoas comuns (medíocres), que se fecham em seus mundinhos egoístas, caso da ausente mãe de Ada (vivida por Bibi Andersen).

Outro detalhe - o cineasta é muito bem resolvido quando o assunto é sexualidade, mas sua relação com o catolicismo é conturbada. Apesar de, a seu modo, fazer um afago na fé católica aqui e ali, ele insiste em culpar a igreja pelas escolhas sexuais alheias. De cada cinco gays almodovorianos, quatro tiveram o primeiro contato sexual com padres. Aqui, a coisa fica bem explícita com Tina, que apesar de ter traumas da infância, mantém uma fé inabalável. E com o respeito que tem por seus personagens, principalmente os travestis, essa religiosidade passou longe da zombaria.

Apesar de o homossexualismo ter uma importância primordial na trama, A Lei do Desejo vai muito além dessa ilustração. O melhor do universo almodovoriano está lá - o humor rasgado e sofisticado (contraposição que virou uma marca do cineasta), as roupas coloridas, os diálogos vibrantes, a metalinguagem bem encaixada e o clima noir que perpassa toda a obra. Em suma, Almodóvar prova mais uma vez que é muito maior que sua sexualidade e suas frustrações.

Ponto Alto: muito engraçada a relação dos dois policiais. Um veterano doidão e sensível e o outro, jovem e arrogante.

Ponto Baixo: o tal de Juan, que é o personagem central da trama, não é bem explorado. Sem falar que Miguel Molina não está no nível do filme.

5 de março de 2007

Marcas do Terror


A participação de Takashi Miike na série Masters of Horror foi um assombro. Quem mandou dá sinal verde para o cara? Definitivamente, um dos filmes mais exageradamente perturbadores dos últimos tempos. Dou a mão à palmatória para quem não viu a escandalosa cena de tortura mordendo as mãos. Agonia pura! Bem, trata-se de um média-metragem que logicamente teve a exibição proibida nas Tvs americanas e é mais uma prova da genialidade demente deste cineasta oriental.

Imprint conta a estória do jornalista americano Cristhopher (Billy Drago) que, no século XIX, em busca de reencontrar um amor do passado acaba parando em uma ilha cheia de prostitutas. Ele pergunta pela amada, mas sem chances. Como o barco em que vai seguir viagem só sairá no dia seguinte, nosso aventureiro acaba aceitando uma gueixa para passar a noite. A escolhida é uma retraída prostituta com uma deformação no rosto (Youki Kudoh, que fez Neve sobre os Cedros e Memórias de uma Gueixa). Ela revela que a mulher que ele procura, Komomo (Michie Itô), se enforcou por não agüentar mais a espera do grande amor, neste caso, o próprio Cristhopher.

Por fim, a estranha mulher conta sua trajetória de vida e o violentíssimo fim da bondosa amada do nosso jornalista. O final logicamente revela surpresas que ninguém em sã consciência poderia supor. O filme é curto, mas a estória faz um vai-e-vem divertido no tempo que parece estender a duração da produção. Uma infinidade de temas desagradáveis (aborto, incesto, tortura...) são abordados e as imagens são tão apavorantes e repugnantes - cortesia do maquiador Yuchi Matsui, parceiro habitual do diretor - que parece que há alguma coisa por trás de tanto horror. Impressão confirmada a posteriori .

Marcas do Terror é adaptação de um famoso romance japonês, Booke Kyoutee, escrito por Shimako Iwai, uma feminista japonesa que neste livro entregou sua obra definitiva sobre a submissão da condição feminina na sociedade nipônica. Miike parece que entendeu a proposta das alegorias feminina. Ele disse que este filme trata de sentimentos humanos ruins como rancor e amargura, e não necessariamente sobre monstros e fantasmas. A própria autora do livro prefere o filme. Sem dúvida, uma maneira autêntica de mandar uma mensagem. Ao público, cabe apenas a sensação de angústia na subida dos letreiros.

Ponto Alto: a canastrice sem precedentes do nosso amigo Billy Drago. Coisa de profissional!

Ponto Baixo: o filme deveria ter sido feito em japonês, não em inglês. A liberdade de Miike foi além da conta na hora de contar a estória, mas esbarrou neste detalhe crucial.