31 de março de 2006

Scanners


Todos sabem que David Cronenberg não é um cineasta fácil e muito menos acessível a todos os gostos. Seus filmes sãos esquisitos, vide Calafrios e Videodrome. Scanners não foge à regra e expõe a mente “doentia” deste fascinante cineasta canadense. Reza a lenda que Cronenberg passou nove meses socado dentro de uma ilha de edição para dar o tom certo a maluca história desses nada simpáticos telepatas. Exagero pouco é bobagem, pois o resultado final não é tão surpreendente assim. No entanto, se levarmos em conta que se trata de um filme feito em 1981, Scanners é original em sua abordagem e na criação de personagens.

Outro fator que chama a atenção são os inquestionáveis méritos técnicos. Estamos falando de maquiagem e efeitos em cenas que cabeças explodem. Tinha tudo para ser ridículo e/ou infantil, mas não é. Há vários momentos memoráveis que exemplificam o porquê de Scanners ter virado uma referência para os apreciadores de filme pouco convencionais. A aparição do vilão Darryl Revok (Michael Ironside), por exemplo, merece uma citação – entrada triunfal. Ironside é um ator de segundo escalão em Hollywood, mas com muito carisma está um passo a frente dos protagonistas. Ele é daquele tipo que você até lembra os filmes anteriores, mas não sabe o nome. Em Scanners, está em um dos seus melhores momentos com certeza!

O problema é que apesar da sofisticação técnica, o filme se conduz por um fio de trama que, em pleno século XXI e com uma cultura que não teme em se repetir, parece bem mais desinteressante. Telepata scanner boboca, Cameron Vale (Stephen Lack), é treinado por uma grande corporação para caçar scanner que prega a supremacia dessa “espécie” humana. Parece coisa de história em quadrinho manjada como X-men. De resto, as reviravoltas comuns do roteiro: ligações “inesperadas” entre os personagens e perrengas mal-resolvidas do passado. Você já viu isso antes, mas em 1981 isso era inovação. Pode acreditar!

Ainda na posição de advogado do diabo, outras seqüências merecem desagravo. Há, por exemplo, uma cena em que o herói se disfarça de funcionário de uma empresa farmacêutica para uma investigação. Isso é a cara do James Bond. Vaias para Cronenberg. Nove meses trabalhando e deixa passar isso. Outra cena de doer é a patética reviravolta que antecede o clímax. Este, por sua vez, é muito bem realizado. Só mais uma - o caso sem sal do fraco protagonista com a bela Kim Obrist (Jennifer O’Neill) é sofrível. Detalhe: a moça é brasileira, isso mesmo, carioca da gema. Sei lá se isso pode servir de orgulho pra alguém, mas, ao menos, ela é boa atriz, além de ser bonita e muito charmosa.

Apesar dos pontos fracos, Scanners vale pelos efeitos visuais deslumbrantes e cenas memoráveis. A perseguição ao furgão é um dos pontos altos, além do duelo final. Só consigo lembrar de supercine. Na minha época, a sessão de sábado à noite era dedicada a policiais violentos com Burt Reynolds e afins e bons suspenses. Não eram tramas bobocas de adultério feitas para a televisão, como acontece hoje em dia. Um pouco de saudosismo não faz mal a ninguém.

Além do mais, o filme é a cara do seu realizador. O clima frio, incômodo... Trilha sonora datada... O artista plástico scanner e suas bizarras instalações... Tudo remete ao tom desesperado e perturbador de um Cronenberg ainda não totalmente maduro. Lembra mais Enraivecida e Videodrome nos acertos e também nos erros. Ignore as continuações e até a promessa de um remake, pois o melhor é mesmo o original. O cineasta evoluiu e muito, mas é fato que Scanners virou referência. Apesar dos contras, ainda vale a pena saber o motivo de tanta badalação!

Ponto Alto: O confronto com um mestre de ioga, que controla os batimentos cardíacos, é deliciosamente kitsch.

Ponto Baixo: Stephen Lack não tem um pingo de carisma.

25 de março de 2006

The Last House on The Left


Nos Estados Unidos, os anos 1970 foram representados por uma geração que parecia não possuir limites. Abuso era a palavra de ordem. Muita droga, muito sexo, muito rock n’roll. E foi neste contexto libertário que, em 1972, Wes Craven concebeu o violentíssimo The Last House on The Left. E parece distante a época em que um diretor que se transformou no ícone do terror adolescente caça-níqueis mostrou indiscutível talento ao retratar a violência com tanta veracidade.
Na produção, a perversidade segue sua trajetória torta. Os marginais não possuem nenhuma motivação para serem tão cruéis. Não são excluídos sociais, não sofreram traumas de infância, não têm, enfim, nenhuma explicação que sirva como jutificativa para seua atos. Eles, entretanto, não hesitam em expor a pior face do ser humano. E isso vale para todos. O troco das pessoas comuns é planejado de forma tão mirabolante que soa desequilibrado em seu excesso de violência.

O filme é extremamente meticuloso e corajoso em abordar a violência com propriedade e de maneira tão visceral. Entretanto, não é esse excesso gráfico o melhor da produção. O melhor está em compartilhar do abuso desmedido a duas belas garotas ao som de uma bem trabalhada música folk, que pontua magistralmente o impacto das imagens. A fotografia cuidadosamente amadora remetendo ao tom documental, imprescindível ao contexto da obra. O espectador fica maravilhado (e até certo ponto, culpado) diante dos excessos do espetáculo de crueldade. Um espetáculo inacreditavelmente sórdido, mas construído de forma absolutamente autêntica.

Inspirado em A Fonte da Donzela de Ingmar Bergman,o roteiro escrito por Craven centra-se na aniversariante Mari Coollingwood (Sandra Cassel) e sua amiga Phyllis Stone (Lucy Grantham). Duas belas garotas submetidas a todo tipo de barbáries nas mãos de bandidos hedonistas. Elas são cúmplices em confidências bobas e Craven chega a sugerir que Phyllis tenha um carinho mais que especial pela amiga. Affair consumado da pior maneira possível a posteriori. Mari está fazendo 17 anos e parece encantada com as possibilidades abertas pela amiga descolada.
As duas vão à cidade a fim de assistir a um show de uma banda de rock – a “famosa” Bloodlust. Depois de um inocente sorvete, a idéia de um pouco de maconha. Um sujeito diz que tem erva e as convence a subir ao seu apartamento para pegar a droga. Pronto, elas caem na armadilha e agora estão a mercê da gang barra pesada de Krug Stillo (David Hess). O resto da turma é formado pelo filho ilegítimo de Krug, Junior Stillo (Mark Sheffler), o escroto Fred “Weasel” Podowiski (Fred Lincoln) e a vamp imbecil Sadie (Jeramie Rain). Só gente boa!

Eles vão humilhar as garotas pelo simples prazer de vê-las sofrer. O abuso violento de Phyllis ainda no apartamento é o pontapé inicial no círculo de horrores. Na manhã seguinte, a turma parte com as duas no porta-malas do Caddilac conversível 1958. Quando o carro quebra, eles se embrenham com as meninas por uma floresta à beira da estrada. O clímax da barbárie. Krug obriga Phyllis a fazer xixi nas calças (“piss your pants”), faz elas baterem uma na outra, e força uma relação entre as duas. Com a ausência momentânea do chefe do bando, a tentativa desesperada de fuga. O erro fatal, a morte cruel de Phyllis a punhaladas e o estupro e execução de Marie. Sangue, muito sangue. Imagens que ficam impregnadas na retina.

Neste meio tempo, papai e mamãe Colingwood personificam a felicidade irritante nos preparativos para a festa de aniversário da filha. Com a demora de Mari, Dr. John (Gaylord St. James) e Estelle (Cynthia Carr) contatam a polícia. Enquanto os vilões são estereótipos de maldade, os policiais são da imbecilidade. O xerife (Marshall Anker) e o policial Harry (Martin Kove) fazem tudo errado chegando ao cúmulo com a negociação de uma carona. As pitadas de humor, definitivamente, não se enquadram no contexto da obra.

Por fim, os marginais vão buscar abrigo na última casa à esquerda. São bem recebidos pelos Collingwood. Por fim, a vingança dos pais ao descobrirem que estão dando abrigo aos algozes da filha. Famosa castração durante o sexo oral e um dos suicídios mais fortes do cinema setentista. O “blow your brains out” não sai da cabeça. Arrepiante! Armadilhas espalhadas pela casa também parecem coisa de menino travesso e não poderiam entrar em um dos mais sádicos rape e revenge da história. Mas se encaixam sim - tudo é violento demais, obedecendo à proposta deliciosamente absurda.

O filme foi produzido pelo idealizador da série Sexta-Feira 13, o espertalhão Sean S. Cunningham e tem outro adepto da “franquia” como assistente de produção, Steve Miner. Entretanto, Last House é parente mais próximo de outro marco da época: O Massacre da Serra Elétrica. Como no filme de Hopper, há uma mensagem que diz que os fatos apresentados pelo filme são verdadeiros. Entretanto, apesar das semelhanças ainda passarem pelo enquadramento sujo e pela imagem remetendo a uma velha Super 8, Last House é mais explícito e visceral que seu sucessor. O filme de Craven é a melhor representação de uma geração que parecia perdida em seus próprios excessos. Impossível não sair cantarolando The Road Leads to Nowhere (autoria de David Hess) cheio de culpa e ao mesmo tempo maravilhado por ter presenciado tanta brutalidade revestida em autenticidade.

Ponto Alto: David Hess está espetacular. Brutal, irônico e violento. A legítima personificação do mal. Destaque é a breve reflexão após o estupro de Mari.
Ponto Baixo: há uma série de coincidências e situações que são um atentado ao bom senso. Havia um objetivo a ser cumprido e, em vários momentos, a lógica acabou em segundo plano. Faltou um acabamento melhor no roteiro.

20 de março de 2006

Super Fly


Estilo. Palavra chave para definir o traficante Priest de Ron O'Neal em Super Fly, o filme de definitivo do blaxplotation americano. Priest era o objeto de fascínio e cobiça de todo negro das grandes cidades americanas nos loucos anos 1970. O filme, dirigido por Gordon Parks Jr em 1972, simplesmente criou a identidade cultural de toda uma geração. Uma figura de veneração no momento em que os negros passaram a se aceitar e buscar, na própria comunidade, suas referências. Ultrapassando as barreiras do cinema, o filme traçou um modismo que extrapolou o figurino e cultivou uma forma de pensar e protestar.

Para entender melhor o contexto de Super Fly, uma noção básica da situação dos negros nos EUA. Depois da escravidão, veio a servidão. Foi apenas a partir da metade do século passado que as coisas começaram a mudar. A mensagem pacifista e contestadora de líderes como Martin Luther King e Malcom X começaram a incomodar. Esses viraram símbolos pelo discurso e também pela intolerância com que foram recebidos em um país de origens racistas. Assim, a alternativa foi gritar. Desta leva, veio grupos como os Black Panthers. Conseguiram virar, a seu modo, as costas para a elite branca que, preconceituosa como sempre, se refugiou nos subúrbios com medo dessa auto-afirmação. E essa auto-afirmação veio por meio de representantes que conseguiram extrapolar as barreiras do gueto e se fazerem importante no contexto do país mais rico do mundo. Esportistas, artistas e líderes religiosos conseguiram unir em volta de si a supremacia norte-americana com cabelo black e punhos cerrados em sinal de protesto. Infelizmente não conseguiram chegar aonde queriam, mas foram ouvidos.

Junto com Muhammad Ali e companhia, Priest foi um símbolo do orgulho negro. Um traficante que planeja a grande venda para se ver livre das ruas; tem medo de matar ou morrer. Um milhão de dólares dividido entre ele e o parceiro seria suficiente. Priest é cool por excelência; cabelos na chapinha, bigodão, roupas caras, o Cadillac Eldorado e mulheres à disposição. Ele tem bom relacionamento até fora dos limites do bairro. Bem que essa última condição é contestada por um personagem no final do filme.

Priest está sempre fungando blow, dirige com desenvoltura seu carrão pelo bairro e faz caratê como hobby. No seu mundo, ele é o rei. O símbolo de esperança, uma esperança agressiva, é verdade, mas ainda sim o fôlego em meio à miséria diante da fartura. Um legítimo precursor do movimento gangsta. Orgulhoso da condição de negro, Priest confere um soco na cara de um bandidinho que diz que o seu visual é de branco. O público enlouquece.

Super Fly, no entanto, merece ser contestado ao apresentar um protagonista carismático, mas cruel e amoral. Em um dado momento, Priest diz que caso seu subordinado não lhe pague vai colocar a mulher deste no meretrício, digamos assim. Um herói sacana personificando uma estratégia de imposição social perigosa demais. Os diálogos emblemáticos com Eddie (Carl Lee) simbolizam o toque politizado em uma produção que, por trás de tanto estilo, ensaia um grito de alerta. No debate sobre o último golpe, Eddie resume o sonho americano de sua geração. “Som estéreo, televisão colorida em cada quarto e um pouco de droga à disposição”. A ostentação infantil dos rappers de hoje começou aqui. Combinação explosiva.

Voltando ao aspecto cinematográfico. A premissa é mesmo batida, mas, acredite, isto pouco importa. O que vale é ver Ron O’Neal andando pelo Harlem ao som de Curtis Mayfield em uma das apresentações de créditos mais bacanas da história. Vale ainda perceber a indiferença do protagonista perante tudo e todos. O estilo despojado e arrogante impregna cada frame com uma originalidade ímpar. Originalidade? Parece incrível, mas a estória furada de um bandido no último golpe nunca foi retratada com tanto charme. A energia vem da fusão acertada da extravagância dos anos 1970 e da autenticidade do movimento negro.

Não podemos esquecer que a obra é uma produção explotation, e, dessa forma, não podia faltar os ingredientes básicos do gênero: sexo e violência. E eles funcionam como deveriam, apenas reforçam a mensagem, jamais têm muito destaque. Os elementos se completam de maneira suave, contrapondo-se a brutalidade do racismo. Só a criatividade dessa turma genial poderia fazer de um filme como Super Fly criador de um estilo que influenciaria tantas gerações.

Para dizer que não falei dos cravos, há problemas. Erros vergonhosos de continuidade e outros defeitos que escancaram os recursos escassos da produção. Limitação que fica evidente no momento em que a polícia interroga violentamente Fat Freddie (Charles MacGregor). Detalhes que não arranham a reputação deste marco representativo do movimento negro. Esqueça Shaft e até algumas continuações paralelas e divirta-se com o melhor. Ontem, hoje e sempre – Poder Para o Povo Preto.

Ponto Alto: a trilha sonora de Curtis Mayfield já seria suficiente, mas o próprio soulman cantando Pusherman em uma casa noturna na comunidade é demais. Deslumbrante.

Ponto Baixo: a maneira equivocada em que as mulheres são apresentadas. Esta abordagem deselegante e machista se perpetuou em boa parte da maravilhosa cultura do gueto. Uma pena!

16 de março de 2006

Do Inferno


A história de Jack, o estripador, em uma versão diferente a partir de uma premissa de história em quadrinhos (o gibi de Alan Moore é ainda mais cruel). Londres do século XIX retratada magnificamente, um protagonista carismático e o controle na mão de dois talentosos gêmeos negros de Michigan. Trata-se de Do Inferno, filme protagonizado por Johnny Depp e dirigido pelos irmãos Hughes. Os gêmeos estavam com a moral em alta depois de filmes como Dead Presidents e o documentário American PIMP. Até curtiram de celebridades depois de uma briga com o rapper Tupac Shakur. Quer dizer, produtores do alto escalão resolveram entregar uma versão agressiva da história de Jack nas mãos de dois politizados diretores negros. Decisão acertada, ao menos para quem gosta de Cinema, com C maiúsculo!

Apesar da narrativa envolvente, da boa edição e das interpretações irretocáveis, o que mais chama a atenção em Do Inferno é a belíssima fotografia e a reconstituição de época. As cenas externas foram feitas em Praga, República Tcheca, lugar perfeito – em termos de luz, cor e sombras – para uma reconstituição fidedigna do bairro barra-pesada de Whitechapel, onde Jack fazia suas vítimas.

Outra escolha acertada dos diretores foi criar um clima incessante de pavor. Um perigo sempre presente e urgente, tudo em meio ao caos da vida miserável de personagens angustiados e assustados. As prostitutas, biscates, viciados, loucos, cirurgiões e demais figuras apresentadas na produção vivem literalmente no inferno. Perspectiva nenhuma, pra ninguém em nenhuma parte.Todos estão desesperados, inclusive os tranqüilos médicos que fazem de seres humanos cobaias em experimentos desagradáveis.É impossível não sentir compaixão diante da situação enfrentada pelos personagens.

Apesar de as concessões com o intuito de tornarem mais acessíveis algumas figuras - principalmente a turma de prostitutas de Mary Kelly (Heather Graham) - comprometerem o charme da proposta original. Johnny Depp brilha novamente e destila seu estilo cool na pele do inspetor Fred Abberline. O cara é amargurado e tenta afogar a dor da perda da mulher e da filha (tudo bem, esse é mesmo um baita clichê) por meio do vício em ópio. O lance é que o detetive é muito inteligente e, além disso, nas bad trips por causa dos efeitos alucinógenos da papoula, acaba tendo visões dos crimes.

A teoria cartunesca para os mórbidos assassinatos de Whitechapel é a de que o príncipe Phillipe ao se envolver com uma humilde doceira estava colocando em risco toda a respeitabilidade da coroa inglesa. O pior é que um rebento já havia surgido do inusitado romance. Solução? Matar quem sabia do romance do príncipe com a plebéia. O principal alvo, um grupo de prostitutas desordeiras do bairro. Como o trabalho deveria ser feito por um especialista, nada melhor que utilizar as vítimas para um detalhado estudo anatômico. Tudo, embrulhado em um exercício estilístico inovador e ousado. Só isso já bastava para colocar Do Inferno como uma produção hollywoodiana bem acima da mediocridade habitual. Mas tem mais.

Existe até mensagem política. Os irmãos Hughes disseram que apesar dos personagens serem todos brancos eles eram os excluídos da época e viviam a margem de uma sociedade ainda mais excludente que a atual. Isso, inevitavelmente, aproxima os personagens dos negros. Boa explicação conceitual que pode funcionar como um atrativo a mais. Entretanto, o quê mais impressiona em Do Inferno é mesmo o visual irretocável. É isso que faz a diferença na simbologia do vulto de um homem de cartola e casaca desaparecendo em meio às ruas molhadas e enevoadas da capital inglesa do século XIX. O maior charme está nesta cara de produção independente falseando um belo exemplar do cinemão. Vale a pena!


Ponto Alto: a sutileza que Depp emprega ao personagem na “leitura” das cenas do crime.

Ponto Baixo: O romance mal desenvolvido e forçado entre Graham e Depp. Simplesmente não existe química.

14 de março de 2006

A Montanha do Deus Canibal


Uma idéia ingênua e maniqueísta, concebida de maneira divertida. Esse é o cerne de qualquer filme B que tenha dado certo. O ciclo explotation italiano, realizado entre os anos 1970 e meados da década de 80, usou este princípio como nenhum outro segmento cinematográfico. No diferencial, desfiles de imagens violentas, corpos nus e cenas de sexo com energia documental. Seguindo essa receita, A Montanha de Deus Canibal é uma obra singular. No caso específico de corpos nus, simplesmente inigualável: o espectador é brindado com a nudez discreta e madura de ninguém mais, ninguém menos que Ursula Andress.

Isso mesmo, a primeira bond-girl, figurinha fácil em eleições de mulheres mais belas do mundo, apresenta sua nudez madura em duas breves oportunidades. Primeiro, em uma momento voyeur na aldeia de nativos hospitaleiros e no clímax da trama, quando os incautos aventureiros caem nas mãos dos perigosos canibais (homens das cavernas, pra ser mais exato). Musa decadente no auge dos seus 42 anos tirando a roupa em produção B italiana. Isso sim é a magia do cinema.

Como todo filme canibal, a turminha da civilização vai arrumar uma desculpa qualquer para se embrenhar por uma floresta inóspita. E os motivos variam de acordo com a criatividade dos produtores; pode ser a realização de um documentário (Cannibal Holocaust), material para tese de pós-graduação (Cannibal Ferox) ou achar o marido desaparecido. O último caso é o mote deste A Montanha do Deus Canibal, que foi realizado pelo artesão Sergio Martino com competência ímpar em 1978. Neste, a bela Dr. Susan Stevenson (Andress) e seu irmão Arthur Weiss (Antonio Marsina) recrutam o recluso antropólogo Edward Foster (Stacy Keach) para encontrarem o marido dela, desaparecido durante uma expedição na Nova Guiné. A suspeita é que o sr. Stevenson esteja na ilha de Roka, mais precisamente na temida montanha Ra-Rami, suposto abrigo de uma tribo canibal.

A trupe desembarca com alguns nativos feiosos fazendo às vezes de guias em uma densa floresta. Primeiro, o desfile de maldades com animais. E neste campo, A Montanha do Deus Canibal foi bem contundente. Durante toda a projeção, vemos pequenos bichinhos sendo presas fáceis de perigosos predadores. Soou forçado. Voltando ao filme, segue-se à tradição, os pobres guias são as primeiras vítimas humanas. Os coitados caem em armadilhas sangrentas e o trio “branco” sobrevive da emboscada realizada por um nativo mascarado, pois são ajudados pelo aventureiro Manolo (Cláudio Cassinelli). Cassinelli foi aquele ator que morreu em 1985 devido à queda de um helicóptero durante as filmagens de um filme do mesmo Sérgio Martino. Uma pena.

Manolo vive em uma tribo hospitaleira que faz festa para receber os novos visitantes. Na festa, as mulheres fazem uma massa branca e a fermentam com cuspe. Explotation bom é assim, tudo pode ser usado para causar mal estar no espectador. Engraçado é constatar que Edward acaba encontrando seu pai em meios aos nativos. Isso mesmo, o pai do antropólogo largou tudo para poder viver junto às comunidades que aprendeu a valorizar. Lógica realmente não é o forte da produção. No meio tempo, um affair inusitado surge entre Susan e Manolo. Até o chatíssimo Arthur faz às vezes com uma bela nativa, mas a menina é assassinada na hora do bem-bom, em um atentado de um nativo mascarado. Na perseguição ao assassino, Edward é ferido na perna. Devido à confusão, os três forasteiros e Manolo têm de deixar a tribo e partir em uma jornada rumo a montanha Ra-Rami. Esta seqüência remete ao clássico Amargo Pesadelo, com direito a quebra de canoa em quedas d’água e parceiro ferido atrapalhando a travessia. Uma reviravolta por conta de ambição e, enfim, o ataque dos homens da caverna.

Um espectador afoito pode ser irritar pelo fato dos canibais só aparecerem mesmo no final da trama. No entanto, não há motivo para preocupação, o show de horrores a partir daí é um dos motivos, juntamente com Ursula Andress, que perpetuaram a fama da produção. Destaque para o visual interessante dos nativos e a perfeita ambientação em uma caverna gigantesca, escura e fúnebre. Neste ambiente irretocável, Suzan é adornada e posta como objeto de adoração da tribo. Pausa para a famosa cena da orgia com direito a uma estranha cena de zoofilia com um imenso porco selvagem. Reza a lenda que Martino não queria a inclusão destas cenas, mas elas entraram por ingerência dos produtores. Realmente soam forçadas, mesmo para um legítimo representante do explotation. Há ainda a engraçada morte do nativo-anão e cenas de castração e canibalismo (obviamente!) completando o menu. O final aberto encerra o espetáculo.

À primeira vista, parece que A Montanha do Deus Canibal é ruim; e realmente tinha tudo para ser uma bomba no melhor estilo Bruno Mattei. Mas não, Martino é esperto e entregou uma aventura divertidíssima. O segredo está na edição ágil em ritmo de aventura e na aposta acertada em personagens carismáticos. Apesar dos excessos, a produção acerta em quase todos os segmentos propostos. O filme é engraçado em alguns momentos, erótico em outros, violento em algumas passagens, causa apreensão e angústia em certas cenas etc. Esta aventura, que traz uma bond-girl de peito aberto (literalmente), é exemplo fundamental do bom cinema extremo europeu dos anos 70. Diversão sem meios termos.

Ponto Alto: a presença inabalável de Stacy Keach como Dr. Edward Fosters e seus traumas por experiências “antropológicas” anteriores. Carisma e canastrice em proporções exatas.

Ponto Baixo: Surge um galho artificial no fotograma e depois a cobra aparece atacando o macaquinho, que luta pra se ver livre do predador. A câmera cruel registra tudo. Seria mais um episódio rotineiro no mundo animal da Nova Guiné, caso aquele “galho artificial” no fotograma não fosse um recurso pra esconder a madeira que empurra o macaquinho para o fim extremamente cruel. Recurso horroroso e reprovável.

11 de março de 2006

O Crime do Padre Amaro


Que filme superestimado é esse tal de O Crime do Padre Amaro? Levou milhares de mexicanos ao cinema e recebeu até indicação ao Oscar e ao Globo de Ouro como filme estrangeiro. Alguém poderia explicar porque essa novela mexicana dirigida com mão frouxa por um tal de Carlos Carrera foi tão exaltada. A explicação óbvia para esse sucesso comercial deve-se a polêmica de cartas marcadas que levantou em um país tradicionalmente católico (a publicidade gratuita de grupos católicos mexicanos que eram contra a exibição do filme). Tal qual ocorreu - em menor proporção, obviamente - quando Dogma do Kevin Smith iria estrear nos cinemas de Brasília. Na ocasião, um deputado católico quis proibir a exibição. Não conseguiu e apenas trouxe publicidade a uma produção que, em condições normais, passaria despercebida. Mesmo caso deste O Crime do Padre Amaro.

Realmente, qualquer filmeco com interesse comercial que finja ir contra tradicionais setores da sociedade ou tenha um verniz artístico – neste caso, a obra de Eça de Queiroz - serve para ludibriar um público impressionável por natureza. As pessoas acham que viram um filme autoral; um legítimo representante da cultura latina. Pura balela, a produção caprichada só comprova o interesse comercial de uma obra ridícula, que desperdiça uma idéia interessante.

É certo que a boa premissa na qual padre Amaro (Gael García Bernal), recém-chegado a uma cidade interiorana e tradicional, tem um caso com a bela devota Amélia (Ana Cláudia Talacon) não é novidade pra ninguém. Assim, o roteirista Vicente Leñero resolveu focar nos podres clericais. Há padres ambiciosos, ardilosos, bêbedos, ligados a narcotraficantes e a guerrilheiros e, é claro, sacerdotes que são amantes insaciáveis. Afinal trata-se de um filme latino e o mundo sabe que nós, latinos, temos o sexo como prioridade máxima das nossas vidas. A corrupção na igreja e a agressão descontextualizada a símbolos religiosos fazem a denúncia do filme algo simplesmente banal e, por isso mesmo, pouco crível.

A originalidade e o atrevimento do romance original foram simplesmente desperdiçados em uma trama pouco envolvente. O filme não desperta real interesse em nenhum momento. Sem falar que a direção de Carlos Carrera é insegura, isso para dizer o mínimo. O melhor exemplo dessa falta de traquejo está no cerne da estória: o envolvimento do casal principal. O romance é tão mal estruturado que acaba soando falso. Acompanhamos as subtramas envolvendo as tramóias sacerdotais e sem mais nem menos o casal está apaixonado e choramingando juras de amor eterno.

A culpa, o remorso do sacerdote diante de uma situação tão delicada, não são explorados com a devida intensidade. O padre não acredita na castidade e diz que só fez o voto porque foi obrigado e pronto, não se fala mais nisso. No livro, o mote é justamente esse. E o pior é que a proposta de expor as mazelas da igreja jamais parece realmente satisfatória. São falsetes pouco atrevidos, como se a igreja tivesse motivos nobres por trás de tudo. O superior de Amaro, por exemplo, padre Benito (Sancho Gracia) mantém relações com narcotraficantes para financiar a construção de um hospital para os necessitados. Nossa, que banho de realidade!

Nessa linha, o pior é ver o roteirista e o diretor enterrarem as possibilidades de um personagem com tanto potencial como o padre Natalio (Damián Alcazar). Socialista por convicção, este é acusado pelas autoridades clericais de fazer uso da Teologia da Libertação e lutar ao lado de guerrilheiros. Bacana, né? O problema é que a única função relevante de Natálio no filme é aconselhar Amaro em um momento crucial da trama. Desperdício, que simplesmente ridiculariza toda a forte tradição esquerdista dos latinos americanos. Só a título de comparação, vale lembrar que em E Sua Mãe Também, um dos personagens tem uma irmã ligada a movimentos sociais e a sátira de Cuarón (feita em não mais que dois minutos) aos socialistas latinos é bem mais eficaz.

Existem ainda outras situações mal desenvolvidas, como a de um pobre homem que padre Amaro ajuda quando o ônibus em que viajam é assaltado, logo no início do filme. O senhor aparece no final da trama, mas ninguém sabe como e por quê. Vamos dizer que ele fecha um ciclo na vida de padre Amaro, pois este entrou na cidade dizendo que sua intenção era servir a Deus, mas se corrompe de tal maneira, que logo se questiona sobre a veracidade de sua fé. Legal até aí. O problema é que a última cena do filme reafirma essa perdição ao concluir que a igreja continua com toda a pompa, mantida pela hipocrisia e aparência. O ciclo não se fecha naquele momento e, por isso, o personagem do camponês não tem razão de existir. Fraco como cinema e ingenuamente maniqueísta como denúncia, O Crime do Padre Amaro é totalmente dispensável.

Ponto Alto: a direção de arte. Destaque para a composição de Los Reyes, cidade onde se desenvolve a trama.

Ponto Baixo: a interpretação de Ana Cláudia Talacon é discreta demais.

7 de março de 2006

Cannibal Holocaust


Qualquer pessoa que tenha o mínimo de intimidade com o universo explotation conhece a obra máxima do italiano Ruggero Deodato. O filme causou controvérsia e polêmica em um mundo famoso pelos excessos. O diferencial de Cannibal Holocaust foi apresentá-lo como uma obra real. Um documentário que acabou mal para os realizadores. A câmera tremida, a conclusão incerta e os abusos e punições dos incautos documentaristas reforçam essa concepção de realidade. A idéia é mesmo genial, por isso comparações inevitáveis que continuam até hoje. O exemplo mais fácil é mesmo Bruxa de Blair. Os produtores negam veementemente, mas que a coisa parece plágio, isso parece.

Cannibal Holocaust nos remete a origem desses deliciosos filmes feitos na década de 1970 e 80 apenas para agredir, mexer com o estômago dos espectadores. Pareciam não ter limite na tentativa de chocar os incautos. O interesse de quem produz explotations (os italianos ainda são insuperáveis, se bem que os orientais não fazem feio) é apenas um: dinheiro. Não tem mensagem política, conscientização, dever social, nada disso. Dizem que Holocaust lança aquela velha máxima de quem são os verdadeiros canibais. E quem levou a sério uma mensagem tão “profunda”? O objetivo, na verdade, é chocar o público para trazê-los ao cinema e, dessa forma, lucrar para produzir mais filmes. Motivo pouco nobre? Ao contrário, na verdade apenas um pouco de autenticidade. Assumir sexo e violência como a fórmula do sucesso. Bem mais honesto que os lobos em pele de cordeiro da indústria cinematográfica americana.

Sabe o que mais chama a atenção em quem aprecia o gênero maldito? A criatividade e a inteligência para driblar os recursos escassos. É neste sentido de improvisação que está a grande paixão. Às vezes a coisa fica somente apelativa e sem um viés satisfatório de interesse, mas quando as peças se encaixam, a impressão é que estamos diante de uma obra única. Concebida tão como o idealizador a imaginou. Isso é uma satisfação não só para os realizadores, mas também para quem aprecia o gênero. Por mais incrível que possa parecer, o acabamento técnico das produções é, na maioria das vezes, bem realizado. Música, fotografia e efeitos nos fazem esquecer que estamos diante de uma produção modesta. E os italianos são insuperáveis neste quesito.

Juntando todos esses elementos, Cannibal Holocaust é mesmo um marco do explotation. Realizado em 1979, sob a batuta de Deodatto, acompanhamos um desfile de excessos que nunca parecem “desagradáveis”. Logo na abertura, os acordes maravilhosos de Riz Ortolani e uma visão aérea da imensidão amazônica. Coisa fina! Depois, somos apresentados ao conceituado professor Harold Monroe (Robert Kerman, fez vários filmes pornôs). Famoso antropólogo de uma universidade nova-iorquina, Monroe tem a missão de ir atrás de quatro jovens que desapareceram ao se embrenharem pela floresta amazônica (Inferno Verde) a procura de personagens pitorescos para realização de um documentário. Depois de alguns contratempos, como ser recepcionado por militares nada hospitaleiros, presenciar um estupro violento e tomar banho com uma porção de nativas ousadas, o herói se depara com um monumento ornado por rolos de fita. Parece que o material pertencia ao grupo. Monroe, então, volta à civilização pra desvendar o mistério. Não sem antes desfrutar uma refeição de procedência duvidosa.

Em Nova Iorque, ao desbaratar os rolos, o professor tem contato com o material que revela o paradeiro do grupo. No suposto documentário feito pelos quatro desaparecidos está o fascínio de Holocaust. Ficamos sabendo que Allan Yates (Gabriel York), Jack Anders (Perry Pirkanen), Mark Tomasso (Luca Barbareschi) e a bela Faye Daniels (Francesca Ciardi, que para alegria da galera não economiza na nudez) são na verdade um grupinho de sádicos. Ao entrar na floresta, eles protagonizam barbáries diversas, como desmembrar uma tartaruga, matar o guia ao improvisar uma amputação e humilhar de todas as maneiras os nativos. Tudo sempre com o registro trêmulo da câmara na mão. Eles chegam ao cúmulo da filha-da-putice quando estupram uma garota e depois ficam zombam da mesma, agora empalada em uma estrutura de madeira que atravessa o ânus e passa pela boca. Ao que tudo indica, ela foi punida por ter perdido a virgindade, mesmo sendo um ato forçado. Para reforçar o tom documental, as imagens têm perspectiva subjetiva e trechos com falhas de edição.

Por fim, uma certa expectativa para a exibição da chocante reviravolta. Os forasteiros são encurralados e a tribo canibal parte para a aguardada vingança. E esta é imbatível. A cena não dura mais que dez minutos e foi realizada de maneira tão realista que faz o espectador questionar a veracidade do material. Maravilhosamente chocante. Entretenimento de primeira qualidade é isso: independente, barato e ousado! A obra continua inigualável como os próprios italianos mostraram em uma série de imitações a posteriori. Ah, os americanos também tentaram, mas sem um pingo do charme do original.

Ponto Alto: nas barbaridades dos documentaristas com os canibais, a queima das cabanas é um momento inesquecível. Cruel, a cena ganha o tom exato na música melancólica de Ortolani que invade todos os espaços. Muito bom!

Ponto Baixo: Faye Daniels mereceria melhor sorte no desfecho da trama. Sentia-se desconfortável com os abusos dos colegas, mas, mesmo assim, recebeu punição severa. Coitada, tão linda!

OBS: alguém sabe dizer se entre as imagens de brutalidades em guerras civis há trechos do clássico AFRICA ADDIO.

5 de março de 2006

Pixote - A Lei do Mais Fraco


A história de Fernando Ramos da Silva é realmente uma expressão inconfundível da intolerância e hipocrisia da sociedade brasileira. Depois de protagonizar a obra definitiva sobre a delinqüência juvenil no Brasil, o garoto foi morto em 1987 em São Paulo. Ele tinha 18 anos de idade e apesar da fama repentina não conseguu se desvencilhar da deliqüência. Assassinato até hoje mal esclarecido; as maiores suspeitas recaem sobre policiais, desafetos do garoto. A simbiose perfeita entre ficção e realidade. O neo-realismo levado às últimas conseqüências. Tornou-se caso pitoresco, nota em caderno policial. Talvez uma página inteira de segundo caderno em algum grande jornal paulistano e, com sorte, alguns trabalhos acadêmicos. País ingrato sempre enaltecendo os medíocres e ridicularizando quem realmente importa. A interpretação ingênua lhe rendeu um lugar na eternidade. Ele tem o papel mais intenso de toda a cinematografia nacional. Esqueça as alegorias personificadas do cinema novo e pagadores de promessa, Fernando Ramos é absoluto! O número um.

Dizem que o filme é comparado a Os Esquecidos, que se eu não me engano foi um que Luis Buñel realizou com crianças mexicanas. Vamos dizer que Pixote apenas seguiu uma trilha aberta pelo cineasta espanhol. O uso de garotos de rua como atores foi apenas um dos fatores que trouxeram reconhecimento ao filme brasileiro. Pixote é contundente como alarme social e irretocável como construção cinematográfica. Hector Babenco nunca se repetiu e dificilmente se repetirá com tanta veemência.

Inspirado no livro a Infância dos Mortos de José Loureiro, o roteiro escrito por Babenco e Jorge Duran mostra sem falsetes a trajetória maldita de um garoto de 10 anos, apenas um dos muitos filhos de uma ninguém na periferia de São Paulo. Pixote é lançado à própria sorte em um reformatório junto com outros amigos de rua depois da morte de um desembargador em um assalto mal sucedido. A faxina nas ruas ressalta que a vida de alguns tem mesmo mais valor.

Sob a turma de Pixote recai a suspeita. Nas mãos de Sapatos Brancos (Jardel Filho, sensacional), os pequenos delinqüentes enfrentam as ingerências de um sistema feito para destruir. Apesar da pouca idade, Pixote mostra habilidade e ousadia para sobreviver em um universo com tantas hostilidades. A lei do mais fraco (ironia sobre a proteção legal aos menores de 18 anos) nunca se mostrou tão ridícula. Os parceiros são cruéis. Em um primeiro momento, o estupro de um garoto causa indignação. São monstros de verdade, bestas sociais! Visão maniqueísta que exorciza as mazelas de uma sociedade desesperada para apontar culpados.

Com o passar do tempo laços de amizade se formam na “prisão” juvenil. Pixote recebe atenção de Fumaça (Zenildo Oliveira Santos), garoto boa-praça que ao dividir um baseado com o pequeno parceiro expõe a carência infantil em sua face mais agredida. Entretanto, Fumaça vira o bode expiatório. Executado, a mãe desesperada lança a polêmica na imprensa. Rebeliões nos reformatórios e a fuga de Pixote e seus parceiros pontuam a trágica epopéia. Distantes de qualquer tipo de amparo, Pixote, Chico (Edilson Lino), Dito (Gilberto Moura) e Lilica (Jorge Julião) vão lutar pela sobrevivência em um lugar que não lhes oferece nada a não ser a palmatória.

Parênteses para uma reflexão sobre Lilica. No início, a porta para o preconceito óbvio fica escancarada diante do dublê de travesti de 17 anos. Mas se fecha com contundência ao mostrar a maturidade precoce de uma criança que ao assumir a homossexualidade nas ruas a faz com autenticidade. Esperta, dissimulada, protetora e acolhedora, Lilica se torna a peça fundamental do grupo de jovens errantes. Dito, seu homem, é quem faz às vezes de chefe, mas é Lilica quem arma todos os esquemas. Emocionante é acompanhar a interpretação improvisada de Força Estranha do Caetano em uma praia carioca “Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo...”. Forçada em princípio, a cena não resiste ao encantamento de uma segunda oportunidade.

Em 1980, a coisa não era fácil nas ruas da imensa metrópole e o grupo se envolve com gente, como o traficante blackcool Cristal (Tony Tornado). Na passagem pelo Rio de Janeiro, Dito faz o grupo cair em um golpe da picareta Glória (Elke Maravilha). A fuga da cidade maravilhosa deixa para trás Chico e seu anseio de comprar uma arma pra poder se vingar do policial que o torturou no reformatório. Sonhos comprometidos pela realidade. Por fim, os três sobreviventes armam golpes nos incautos clientes da prostitua Sueli (Marília Pêra). A mulher desinibida e amargurada tem nas crianças soluções para suprir todas as ausências – amante (Dito), desafeto (Lilica) e, obviamente, filho (Pixote). Depois de vomitar a condição de marginal, Pixote encontra no seio da prostituta uma oportunidade de desfrutar da fragilidade da infância. Pietá miserável e fundamental. Antes disso, uma pista ainda no reformatório quando Pixote fica deslumbrado diante da imagem de Nossa Senhora entrega o desespero pela ausência do amor materno.

Pixote alcançou o reconhecimento. Marília Pêra foi eleita melhor atriz do ano pela associação dos críticos de Nova York. Prêmio merecido pra um entrega tão expositiva e sem jamais soar enganosa. Festivais de cinema mundo afora também trouxeram fama para as auguras da infância perdida. Uma revista francesa chegou a colocar a produção como a terceira melhor da década de 1980, perdeu para Fanny e Alexandre (Bergman) e Ran (Kurosawa). Hector Babenco não é mais o mesmo, os garotos continuam anônimos e o resto do elenco ainda vivo luta pra sobreviver em trabalhos fáceis. No entanto, Fernando Ramos da Silva passou incólume por todo o processo de pasteurização do filme. Para esse garoto genial, apenas nossa reverência.

Ponto Alto: o personagem Roberto Pé-de-lata. No reformatório, o garoto enaltece o ídolo em uma apresentação no dia de visitas.”Eu sou o Roberto Carlos dos pobres...”, vocifera com os olhos fechados. A perna mecânica é, com certeza, uma das ironias mais inteligentes da história do cinema brasileiro.

Ponto Baixo: difícil acreditar em uma imprensa responsável e denunciativa. Hoje é um enfadonho jogo de interesses, imagine no início dos anos 80, com o Brasil sob a batuta de um general.

2 de março de 2006

Antes do Amanhecer/ Pôr-do-Sol



Quem nunca conheceu alguém atraente com o papo fluindo de forma tão sutil, que as frases eram entendidas antes do fim. A sensação de descoberta e intimidade no mesmo momento. As pessoas precisam ter uma grande afinidade para a coisa fluir de maneira tão fácil. Encontros assim são raros, mas acontecem. Quem já passou por isso sabe que é uma sensação fantástica. Pois é sobre um papo gostoso que trata a pequena saga idealizada por Richard Linklater. Como protagonistas, os bacanas Ethan Hawke e Julie Delpy.

Antes do Amanhecer/Antes do Pôr-do-sol são produções hollywoodianas, mas fogem da sacarose ao optar por um viés inteligente. Ao invés de trampolim pra alguma atriz-cantora emergente, a saga de pouco mais de três horas é recheada de diálogos fluentes e merece destaque por fugir do lugar comum. A situação pode parecer inusitada, mas, acredite, soa verossímil. A estória de amor jamais deixa de ser convencional, mas com uma abordagem tão interessante torna-se, simplesmente, bonita. Fórmula simples e eficiente.

O casal se conhece no verão europeu em um trem, que vai de Budapeste a Viena, e decidem descer na capital austríaca. Na verdade, o americano boa-praça Jess (Hawke) convence a bela francesa Celine (Delpy) a lhe fazer companhia na cidade, pois o avião para os EUA só sai no dia seguinte. Eles passeiam, namoram, bebem, comem, se divertem, sorriem e conversam muito. Falam como pessoas comuns, lançam idéias sobre religião, cultura, problemas sociais, anseios, perspectivas profissionais e, obviamente, amor.

Eles estão com pouco mais de 20 anos e idealizam relacionamentos, contam sobre experiências mal sucedidas, apresentam frustrações amorosas etc. E o espectador torna-se cúmplice deste envolvimento. Tem de ser muito resistente pra não se identificar com personagens tão carismáticos. O quê mais aproxima o espectador é a maneira despojada em que o diretor (e também roteirista) Linklater conduz a trama. Apesar do filme ser centrado no casal (em tela o tempo inteiro), em raros momentos soa exagerado ou teatral. Neste caso, acho que a decisão acertada foi usar atores, digamos, do segundo escalão hollywoodiano. Apesar de protagonizar um filme ou outro, Hawke e Delpy são coadjuvantes de luxo na engrenagem mainstream. Apesar do respaldo comercial, eles não têm (não podem) ter a vaidade dos grandes astros. Neste caso, um fator imprescindível para a empatia com o público.

Voltando à trama, apesar de terem dito várias vezes que o momento era só aquele e que não teriam uma segunda oportunidade, ambos se entregam no fim. O casal se despede na porta do trem com a promessa de se encontrarem na mesma cidade em seis meses. Neste momento, a angústia da despedida esboça uma pieguice. No entanto, Linklater logo se redime ao nos apresentar os lugares em que o casal passou o dia, agora vazios. Aqueles espaços são importantes e têm algo especial, pois os dois o tornaram especial. O clima é saudoso.

Nove anos depois, sabemos que Jess escreveu um livro sobre o encontro e o está divulgando em Paris. Celine aparece. Um passeio é inevitável. Eles estão mais maduros, as rugas já deixando marcas. Jess agora está casado, no estilo mais estabilidade que paixão, e Celine se formou em ciências políticas e trabalha pra uma ONG de causas ecológicas. Apesar do segundo filme continuar com o foco no casal, o destaque desta vez é a personagem de Delpy. Jess passou a ser um sujeito comum e estável sem ser dado a grandes rompantes. Não tem mais o vigor da juventude. Celine, por sua vez, é descolada e inteligente, mas extremamente insegura. Ainda está na luta e gosta de viver. Ela se sente desconfortável com a estabilidade do amigo. Uma personagem maravilhosa, com sua força abalada pelas incertezas. Nenhum ranço machista, como se a mulher precisasse de homem pra ser feliz. Longe disso, a idéia é compartilhamento e, acima de tudo, autodescoberta.

O roteiro escrito por Linkaler, agora em companhia do casal de atores, sugere que Celine se tornou difícil, pois não soube encarar a importância da experiência que viveu em Viena. Ela tentou acreditar que aquilo foi só um momento, tanto que enquanto Jess apareceu em Viena seis meses depois, Celine não pôde ir. Ele escreveu um livro sobre o assunto, ela fez uma canção sobre o encontro, mas insiste em dizer que a valsa são para todos os seus encontros furtivos. Lógico que isso é exagerado, pois o romance de um dia não poderia deixar tantas cicatrizes assim, ainda mais se tratando de pessoas tão espertas. Mas é esse o nosso ponto em comum com os personagens.

Celine, em minimizar a importância daquele momento, se anula. Jess encarou os fantasmas e agora está mais seguro. Ele mesmo diz em um momento que era inseguro quando jovem. Celine, por sua vez, jogou a situação pra debaixo do tapete e agora tem de enfrentar uma pessoa que mexeu tanto com seus sentimentos. A garota insiste em incomodar o parceiro com tiradas que procuram desmentir o óbvio. Ela procurou Jess (ou ao menos um pouco dele) em cada parceiro que abria a possibilidade de um novo relacionamento. Ela sabe disso, apenas não pode admitir.

E assim, entre belas paisagens parisienses ao cair da tarde, o filme se desenrola neste jogo em que ela tenta ludibriar e maltratar o companheiro pelo fato deste aparentar ter superado a história. No entanto, tudo parece fazer sentido no desfecho no apartamento. Celine faz uma caracterização inesperada de Nina Simone e, neste instante, percebemos que eles não são mesmo tão parecidos assim. Depois de tanto em tão pouco tempo realmente não poderia dar certo. A antítese de toda a obra.

Uma trajetória que merece ser conhecida por simplesmente tentar fugir do óbvio. Os dois filmes são cheios de detalhes, cacos de diálogos que fazem sentido em um contexto puramente cotidiano. A mensagem é desfrutar o momento e não pensar na efemeridade daquele instante. Recomendado para quem ainda não muda de calçada quando aparece uma flor!

Ponto Alto: A fotografia reforça a beleza das cidades, que por si só são personagens da estória.

Ponto Baixo: Os personagens falam muito e é essa a idéia do filme. Há muita troca de olhares e gestos delicados e expressivos, entretanto, um pouco de silêncio fez falta. Sutilezas sugeridas, e não cumpridas.