28 de fevereiro de 2006

Barra Pesada


O dramaturgo paulista Plínio Marcos alcançou merecido destaque ao passear com desenvoltura pelo universo sombrio dos miseráveis brasileiros. Sua obra mais famosa – Dois Perdidos Numa Noite Suja retrata bem a dificuldade enfrentada pelos que estão à margem da sociedade em um país pobre como o Brasil. Personagens perfeitos escondido em tocas imundas dão o colorido ideal à imunda sarjeta. Nessa linha, há um trabalho do escritor intitulado Quebradas da Vida, que serviu de base para Reginaldo Faria trazer a tona uma pequena obra-prima marginal da nossa cinematografia – Barra Pesada. As aventuras de Queró - filho de prostituta, nascido e criado em zona boêmia do Rio de Janeiro - é um símbolo do melhor que o cinema nacional tem a oferecer. Personagens fortes e cruéis, amores desamparados, desesperança, amargura, violência, amizade e, é claro, muito bom humor. Enfim, uma ciranda de valores, sentimentos e obsessões que expõe o pior (e o melhor) do Brasil.

O roteiro, escrito por Reginaldo Farias, gira em torno de Queró (Stepan Nercessian), pivete inexpressivo no concorrido mundo marginal carioca. Ele vive de pequenos roubos e golpes em turistas na companhia do inseparável amigo Negritim (Cosme dos Santos). Ao desafiar um malandrão numa partida de sinuca, complica-se de vez ao ter que levantar um bom dinheiro até o dia seguinte. Os pequenos assaltos não rendem muita coisa e o pior é que a dupla é extorquida por dois informantes da polícia. Tudo vai mal e ele jura que se tivesse uma arma, conseguiria sair daquela mediocridade que não lhe garante respeito no próprio ambiente. O momento de destaque nesta apresentação do protagonista é o roubo cruel a Naná, empregado-faz-tudo na casa do meretrício. Queró espanca a vítima como se quisesse se vingar de todos os que o subjulgam. O homossexual carente a sua frente é, por incrível que pareça, pior que ele. É um dos raros momentos na vida em que se sente superior a alguém. Extrapola a condição de humilhado e vira algoz. Não sabe lidar com a situação e o reflexo é uma explosão desnecessária de violência.

A vida de Queró começa a mudar, quando o objeto do desejo, “a draga”, aparece reluzindo nas mãos do traficante meia-boca Xupinha. Oportunidade única. O assassinato e a série de reviravoltas que se seguem o encorajam a mudar de vida. Apesar do esforço da fuga constante, Queró sente pela primeira vez o prazer de ser importante, de valer alguma coisa. Mesmo assim, o conflito com o novo estilo se resume na pergunta macabra da nova companheira, a prostituta Ana (Kátia D’Angelo): “Você sabe que é trouxa, né?! O rei dos trouxas!”. O padrão de vida mais sofisticado não faz Queró perder a essência de desamparado. Continua mané, mas agora é o alvo principal dos dois principais traficantes do submundo carioca e também da polícia. A situação fica difícil. Acuado, se refugia em um terreiro de macumba. O desfecho é um espetáculo.

O filme não é realmente agressivo e não chega a ser incomodo. Tem uma narrativa até certo ponto confortável, sempre pontuada por um humor legítimo. Essa leveza na construção alivia em parte o impacto desta obra singular da filmografia policial brasileira. Isso é detalhe menor perto de Milton Moraes, Wilson Grey e Lutero Luiz como legítimos representantes da vida cafajeste brasileira. Barra Pesada é pra ser visto e revisto com a despreocupação de uma época em que o cinema brasileiro não soava hipócrita ao retratar a realidade.

Ponto Alto: o leal Negritim (Cosme dos Santos). Ele personifica a ponta de bondade e cumplicidade em um universo sem perspectiva. Engraçado constatar como Cosme dos Santos não envelheceu nada de 1977 pra cá.

Ponto Baixo: a fotografia é cuidada demais. Em alguns momentos, sente-se falta daquela estética escura e suja.

26 de fevereiro de 2006

O Seqüestro


Em 1973, o seqüestro do garoto Carlinhos chocou o Rio de Janeiro. O despreparo da polícia e a participação lamentável da imprensa no caso o deixaram sem solução. Até hoje ninguém tem notícias do menino. Foi uma história policial atípica e de muita repercussão. Para início de conversa, a maior suspeita é a mãe do garoto. Segundo uma das versões, ela teria forjado o seqüestro da criança juntamente com um pai-de-santo, seu amante, pois pretendia fugir e queria a companhia do filho. Dizem que ela tinha verdadeira adoração por Carlinhos. Entre os fatos pitorescos, reza a lenda que era extremamente exibicionista e quando o circo de jornalistas e curiosos se formava em frente a sua casa, gostava de se exibir na janela com roupas sensuais. Julgaram-na como louca.

Outro fato que chamou a atenção foi a participação infame da imprensa no caso. O seqüestrador deixou uma carta pormenorizando os procedimentos do rasgaste. Depois de uma negociação até hoje mal explicada, a carta acabou sendo publicada ainda no mesmo dia em um grande jornal. Resultado: no dia combinado para a entrega do resgate, havia uma multidão a espera da negociação. Pipoqueiros e carrinhos de cachorro-quente completavam o circo. A participação da polícia (Delegacia do Catete) também tem destaque. Negativo, é claro!

Enfim, a história virou livro e dava um filme. E foi isso que aconteceu. A sempre oportunista produtora Vydia aproveitou o mote e entregou um dos trabalhos mais irônicos da cinematografia nacional. Trata-se de O Seqüestro, realizado em 1980 sob a batuta de um dos sócios da produtora, Victor di Mello, e com a presença inevitável de Carlo Mossy. Antes dos créditos vem a mensagem ocupando toda a tela “Os personagens e episódios desta história são fictícios. Qualquer semelhança, se houvesse, seria lamentável coincidência”. Depois a bela música tema de autoria de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. Começa o show. Somos apresentados a uma delegacia em uma noite comum de trabalho. A fauna é formada pelo delegado-chefe Marcondes (Jorge Dória), subdelegado Marcola (Milton Moraes) e o agente Vilarinho (Mossy). Eles ficam sabendo que um garoto foi seqüestrado em Santa Tereza. Detalhe, a polícia fica sabendo por meio da ligação de uma pessoa que viu pelo noticiário da televisão.

Aí tem início a série de desencontros e desinformações sobre o paradeiro de Zezinho. Cada personagem ligado ao garoto parece esconder algo. Pedro, o pai, comerciante (diz-se industrial) de uma empresa de couros na Baixada, não vai bem nos negócios, mas tem uma Brasília novinha. E as contradições não param por aí. A mãe de Zezinho, Dona Fátima, uma pacata dona de casa, não vive bem com o marido e revela que este, apesar de não dar assistência financeira à família, possui três carros. Como se percebe, além do alívio financeiro, o caso pode ser uma situação única para armar contra antigos desafetos. Fátima é, na verdade, ninfomaníaca e, por esses e outros motivos, o casamento não vai lá muito bem. Até os empregados da empresa de couro e, logicamente, a polícia têm a ganhar com a repercussão causada pelo desaparecimento de Zezinho.

Como bons estereótipos dos brasileiros, todos enxergam no seqüestro uma oportunidade de levar vantagem. Entre contradições e ironias, o filme vai se levando com algumas cenas fortes e que fogem do contexto sacana da produção. A sessão de tortura a que o delegado Marcondes submete a mulher de um suspeito é desnecessária. A sutileza da sugestão agride mais e se encaixa melhor na proposta de O Seqüestro. Duas passagens confirmam essa tendência. O acerto para entrega do resgate no Maracanã e a oportunidade oferecida por um banqueiro interessado em explorar a imagem de Zezinho. No desfecho da trama, o golpe fatal aparece em um escrito que novamente ocupa toda a tela: “Este filme é dedicado a Serpico e a todos que tentam fazer da polícia uma instituição digna; capaz de oferecer realmente segurança a todo e qualquer cidadão”. Realmente uma tragédia à brasileira. Vale a pena conferir.

Desta vez, o ponto alto e o ponto baixo foram escritos obedecendo à lógica canalha brasileira.

Ponto Alto: Dona Fátima é linda. A nudez desinibida da musa Helena Ramos é um colírio. Desnecessariamente imprescindível.

Ponto Baixo: O chapéu de cowboy foi uma boa sacada. Mas porra, Mossy, traveco não! Aí você acaba com sua reputação, meu querido.

23 de fevereiro de 2006

Amargo Pesadelo


O talentoso diretor franco-argentino Gaspar Noé diz que buscou inspiração em Amargo Pesadelo pra realizar a cena do estupro de Monica Bellucci em Irreversível. É por essas e outras recordações, que o filme, dirigido por John Boorman em 1972, é um marco para toda uma geração. Mainstream por excelência, Amargo Pesadelo arrancou suspiros na época do lançamento pela originalidade em optar por uma temática que antes era restrita a produções independentes. Hollywood poucas vezes foi tão ousada.

Com elenco afiado e direção competente, Amargo Pesadelo é um dos filmes mais bacanas dos anos 70. Logicamente a áurea transgressora é a principal responsável pelo legado da produção. Apesar disso, o resultado visto somente pelo canal do entretenimento é bem satisfatório. A produção é extremamente bem cuidada. Uma aventura simples, contando com um belíssimo cenário, atuações na medida certa e uma edição ágil e eficiente. Tinha tudo para dar certo. E deu!

Baseado no livro de James Dickey, a trama gira em torno de quatro amigos da cidade que aproveitam para descer o rio Cahulawassee, no estado americano da Geórgia. É uma oportunidade única para entrar em contato com a natureza, uma vez que a área se transformará em uma represa para a construção de uma hidrelétrica.

O grupo, comandado pelo durão Lewis Medlock (Burt Reynolds), vai enfrentar não só os perigos de um rio raivoso, mas a fúria da natureza em sua essência mais brutal. É no momento em que Ed Gentry (Jon Voight) e Bob Trippe (Ned Beatty) se separam dos outros dois que a força da natureza vem à tona. A revolta maldosa é personificada por dois rednecks feiosos. Eles subjugam os amigos e acabam estuprando Trippe, em cena marcante. A solução para o caso sai do controle. As coisas se complicam; os amigos terão que continuar a descer o rio, agora por uma questão de sobrevivência.

A dialética da produção é a ecologia mesmo. A ambição urbana invadindo o espaço da natureza e a vingança desta. É lógico que os protagonistas terão de usar da força bruta e de instrumentos rústicos como o arco e flecha (se bem que a arma é bem modernosa) para fazer valer a lei do mais forte. O clima, ironicamente, é de claustrofobia. Eles estão sufocados pela paisagem exuberante, mas opressora e desconfortável. A fotografia realça a dimensão ridícula do homem perto da força do espetáculo natural.

O ser humano pode dominar os meios, mas é impotente diante da natureza em sua forma primitiva. Uma proposta assim soa vencida nos dias de hoje, mas no começo de 1970, poucos segmentos da sociedade tinham consciência ecológica. A lei era sugar ao máximo sem se preocupar com nada. O filme precisou ser transgressor e explícito pra alertar sobre os perigos indiscriminados do abuso dos recursos naturais.

Mesmo com a diversão e a mensagem politicamente correta, não são as belas paisagens naturais que levaram o filme pra posteridade. O diferencial de Amargo Pesadelo vai mesmo em sua brutalidade e a agressividade. A cena do estupro foi cortada nos cinemas ao redor do mundo, inclusive no Brasil. O baixinho Beatty, muito bem em sua estréia no cinema, sofre a humilhação com a angústia e a incerteza de quem não sabe se aquela situação é real. Um sadismo assustador e que até hoje serve de referência. Seja pelo convencional ou alternativo, Amargo Pesadelo é cinema de primeira. Indispensável.

Ponto Alto: o duelo de banjos (violão e banjo, na verdade) entre o menino deficiente e Drew (Ronny Cox). Antológico.

Ponto Baixo: o desfecho não é lá muito previsível, mas compromete a proposta ideológica levantada pela produção.

22 de fevereiro de 2006

Ódio


Muitos torcem o nariz, mas é fato que Carlo Mossy é uma referência viva pra quem gosta de cinema brasileiro. Fez filme para todos os gostos, sempre com inovações técnicas (as fotografias de filme são maravilhosas) e esteve sempre à frente do seu tempo com muito sarcasmo. À frente da produtora Vydia, na direção ou como galã, ele fez, a seu modo, a diferença no cenário nacional. Arrisco a dizer que seja um dos nomes mais queridos do cinema “maldito” brasileiro. Não fica apenas nas pornochanchadas que atacavam o fetiche correto do brasileiro. Que garoto brasileiro não pensou em uma empregada ou manicure em noites mal dormidas na adolescência? Entretanto, filmes taciturnos e amargurados como Ódio também são marcos na filmografia de Mossy.

E é essa faceta cruel que estampa todos os frames do realmente “maldito” Ódio, realizado em 1977. A violência sem meio termo explicitada em um roteiro que de tão pessimista provoca angústia. Um filme de vingança que se Tarantino tivesse visto colocaria em par de igualdades com Thriller – A Cruel Picture. Assim como no filme sueco, o clima perverso é capturado por uma inspirada fotografia. No caso brasileiro, a pobreza produz retratos palpáveis.

A estória gira em torno do advogado e professor de direito penal Roberto (Mossy). No auge da carreira profissional, ele presencia e se torna o único sobrevivente da chacina de sua família. Quem lembra de Sob o Domínio do Medo do Peckinpah? Referência imediata. Faça assim, traga isso para um Brasil sujo e depravado. Os sinais de reconhecimento são vários. Algo tão realista que causa uma estranha identificação.

Roberto então abandona o emprego e a esposa e se isola em uma pensão pé-de-chinelo no subúrbio do Rio. Ele não sabe o quê fazer! Rememora o crime, fala pouco, mas a sugestão inevitável da vingança sorri para nosso herói. O sorriso vem de um malandro tipicamente carioca: Toninho (Sérgio Guterrez). Ele personifica o que Roberto mais detestava, um afronte a sua estável vida pré-chacinha. Muito mais parecido com os bandidos, Toninho é o reflexo torto do protagonista.

Dessa forma, Roberto parte para a vingança, mas é uma vingança pouco usual. Quer dizer, o justiceiro extirpa o que há de pior em cada bandido e eles acabam morrendo por conta disso. Um é covarde, outro oportunista, outro hedonista e outro, logicamente, ambicioso. Apesar do confronto com o bandidão Nestor (Celso Faria) ser o clímax do filme e pedir uma ação mais “intensa” do héroi, a morte mais incômoda cabe ao viciado Geraldão (Átila Iorio). O troco no canalha que molestou uma criança vai além das expectativas de Roberto. O justiceiro sente isso com o corpo, a vingança não o conforta. Ao contrário, o advogado se transformou em um dos assassinos de sua família.

Ódio tem problemas sim, com várias situações mal resolvidas e algumas atuações sofríveis. Com certeza não agrada a todos os paladares. Mesmo assim, se trata de uma obra indispensável ao apreciador do cinema nacional, justamente por ir na contramão das produções globais ou do esquemão cinema novo. Um filme que merece ser descoberto e que provocará sensações intensas em qualquer pessoa. Cinema contestador é isso, a menos que o espectador ache que o alerta antidrogas nas novelas é mera benevolência social.

Ponto Alto: a música que pontua todo o filme (Concerto Pour Une Voix).

Ponto Baixo: certas presenças como a de Diva (Marilisi) e do travesti Vanusa (Fernando Reski) são deixadas de lado em detrimentos de outras. Exemplo é a mulher do herói, Clarrise (Fátima Freire), que tem uma participação maior do que deveria.

PS: Esse post é dedicado a minha querida amiga Andréa Ormond. Só tive acesso ao filme por conta dessa menina fantástica! Aliás, peguei praticamente todas as referências da crítica que ela havia escrito no Estranho Encontro. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

12 de fevereiro de 2006

Beautiful Girl Hunter


Quase todos já ouviram falar de Buio Omega, um dos filmes mais famosos do “maldito” Joe D’Amato. Na obra em questão, realizada em 1979, um jovem bonitão atraía garotas para sua mansão e as submetia a todo tipo de barbaridades. Na verdade, depois de matar as meninas com requintes de crueldade, a forma de se livrar dos corpos que acabava sendo realmente chocante. No filme de D’Amato, o personagem fazia isso como forma de se vingar do mundo pelo precoce fim de sua amada. Buio Omega é um marco incontestável na filmografia de D’Amato. Ainda em 1979, traga isso para um Japão misógino e ainda amargurado pelos traumas da 2ª guerra. Esse verdadeiro murro na cara se chama Beautiful Girl Hunter e foi dirigido por Norifumi Suzuki, famoso por nunexplotations nipônicos, como School of the Holy Beast.

Pra usar um eufemismo, Beautiful Girl Hunter é amoral. Uma obra ímpar de crueldade e machismo como poucas vezes o cinema teve capacidade de produzir. Trata-se de um filme essencialmente perturbador e com fins discutíveis, mas que como cinema é muito bem acabado. A trama idealizada por Massaki Sato e roteirizada por Jiku Yamatoya se passa na cidade de Akita, onde um jovem rico e órfão Tatsuya Jinno é simplesmente a personificação do mal. Charmoso, ele monta emboscadas a fim de prender jovens garotas no sótão de sua confortável mansão. No calabouço medieval de torturas, ele as submete a um doloroso e extremamente cruel método de “reeducação”. Motivação? Bem, ele descobre que na verdade é filho de um assaltante escroto, que estuprou sua mãe durante um roubo. Conclui, então, que o mal está no sangue e vai punindo suas vítimas pelos motivos mais fúteis possíveis.

A primeira vítima é Saeko – uma gueixa sem vergonha usada pelo pai adotivo para humilhar sua mãe. Vamos dizer que para uma mente doente, a motivação é plausível. Ele perde a virgindade com ela e depois de mantê-la amarrada no calabouço a mata de maneira plástica durante uma festa. Norifumi ainda oferece uma angustiante cena de necrofilia. A segunda vítima é a estudante Kiyomi que faz um discurso pacifista na TV. O problema é que ela cede aos encantos do rapaz e acaba “desfrutando” da submissão imposta por seu algoz. Ele a deixa sobreviver e ainda ensina matemática a menina. E a julgar por uma cena posterior, ela está muito grata ao homem que a seqüestrou.

Na mente doente de Suzuki as mulheres precisam descobrir o prazer da submissão, condição inegável da existência feminina. Isso, segundo um monstro, é lógico. O protagonista Tatsuya, no auge do machismo refere-se às vítimas como passarinhos que mantém em uma gaiola. No passado, a mãe dele aprecia o estupro e isso leva o senhor Jinno (pai) a humilhar constantemente a esposa e o filho bastardo. Quer dizer que a mulher é a verdadeira culpada no final das contas? Até acho Suzuki um cineasta de talento, mas que ele é um verdadeiro canalha, não resta a menor dúvida.

Entre as vítimas, ainda há a cantora arrogante Jun Yashioji e sua assistente Sugimuru Machiko. Neste caso, a idéia do jovem assassino é aumentar o ego de Sugimuru ao afirmar que esta é mais importante (e bonita) que a outra. Isto é, instigar a ponta de ressentimento e inveja que obviamente existe em uma relação como a das duas. Ele ainda usa o papai Hirukawa, que continua na ativa, para maltratar as garotas. O fim das duas é ingrato.

Entre um sadismo e outro, o espectador é levado ao confronto final. Tatsuya é emblemático: “Quem vai ganhar; o demônio em mim ou Deus em você?”, pergunta para sua namorada, a cristã Yumiko. No entanto, até a cândida namorada - que chama Tatsuya de “irmão” - tem pecados. Bem infames, por sinal.

Além de misógina, a produção tem uma visão distorcida da guerra. Tatsuya usa como bíblia o Night and Fog, que narra a abominável experiência nazista na Polônia durante a segunda guerra. A estrela de Davi também é uma referência constante no filme. O protagonista tem a estrela no início, mas luta para passar esta condição às vítimas. O judeu que vira nazista. Uma lógica, que mesmo revestida de denúncia, soa preocupante, ainda mais no Japão. O slogan da operação que comandou os nazistas na Polônia era “Massacrar corpos, espíritos e corações”. E isso Beautiful Girl Hunter consegue fazer com o espectador, pois é simplesmente impossível ficar indiferente diante de tanta polêmica.

Ponto Alto: esteticamente muito bem realizado. Destaque para fotografia e música.

Ponto Baixo: a discussão do filme segue uma proposta de tendências absolutamente reprováveis.

Tentação



Mark Ruffalo é uma espécie de galã desajustado e desleixado, um cara como qualquer outro. A identificação é quase imediata. Ele tem talento, mas centralizar um filme intimista nas mãos dele foi um dos fatores que matou Tentação, baseado em dois contos de André Dubus. Ruffalo não segura o filme no papel do confuso Jack Linden, sorte da querida cult Laura Dern que dá show como a esposa traída Terry. Dizem que ganhou até um prêmio dos críticos de Boston pelo papel. É fácil imaginar Dern saindo exausta das gravações, pois a menina se entrega em uma interpretação visceral. No entanto, andorinha só não faz verão e ela não tira o filme da mediocridade. A culpa também não é só de Ruffalo como protagonista, mas principalmente do diretor John Curran. Ele tem mão frouxa e consegue estragar o que seria uma produção alternativa americana bem acima da média.

A estória gira em torno de uma ciranda de adultérios entre casais mui amigos. Jack Linden é o centro, quer dizer sua esposa o ama e não quer perdê-lo e a amante Edith Evans (Naomi Watts) também é apaixonada pelo cara. Edith está disposta a abandonar a vida aparentemente estável e o marido Hank (o ator de seriado Peter Krause, no melhor estilo bucha de canhão) pra ficar com o amante. Jack, como não poderia ser diferente, está confuso com a situação, pois apesar de transar numa boa com Edith, tem culpa pelo amigo e quer manter o casamento, mesmo que este esteja se desfazendo – filhos pequenos e outras coisinhas mais. Desse modo, o inevitável acontece, ele empurra o amigão pra sua esposa, uma forma de expiação ou algo do tipo. É lógico que essa atitude não consola, mas machuca.

A primeira crítica vai para as personagens femininas. Enquanto os maridos são professores de literatura em universidades pequenas, elas são, simplesmente, donas de casa e vivem pelo e para os parceiros. A submissão de Terry para manter Jack em casa é simplesmente ridícula e soa inverossímil. Estamos no século XXI e uma concepção assim soa como agressão a todas as conquistas feministas. Outro fator negativo fica por conta dos Evans, eles são muito mal explorados. Sabe-se que Hank tem mais sucesso profissional que o rival e que Edith é pra lá de insegura. Engraçado, pois a única decisão plausível e consciente quem toma é a personagem de Watts no final da trama. Menos mal!

No entanto, o diretor pisa com força em todo o trabalho, que apesar dos problemas citados se manteria em um bom nível, ao entregar um filme extremamente CHATO. Em suma, Tentação é aborrecido, pois, apesar da boa música e fotografia, tem uma edição lamentável. A falta de ritmo afunda de vez as pretensões desse círculo de amores, inseguranças e traições. Falta personalidade aos protagonistas e também ao diretor. No final, o espectador fica se perguntando se vale mesmo tentar expor personagens em princípio tão complexos. A troco de quê, de um simples estudo de casos de adultério? Muito pouco!

Ponto Alto: o figurino é impecável para a proposta do filme. Cidade pequena nos EUA.

Ponto Baixo: Naomi Watts está contida demais.

11 de fevereiro de 2006

Má Educação


Almodóvar é um gênio da sétima arte ou apenas um oportunista? Sei lá, seus roteiros recheados de diálogos fluentes e deliciosos, e sua técnica de dirigir atores e compor imagens são primorosas. Os cenários coloridos, personagens sempre a beira de um ataque de nervos e a fluência nervosa do idioma espanhol dão os tons acertadamente urgentes, cafonas e piegas de seus filmes. O problema é que suas premissas acabam sendo por demais repetitivas. É fácil observar que com raras exceções, como A Flor de Meu Segredo, a opção sexual sempre colocada em risco por meio de opções lascivas é o tema central de seus filmes. Os personagens de Almodóvar têm um certo dinamismo sensual desesperado, quase furioso.

A opção de ter um homem, ao invés de uma mulher (femme fatalle), foi perfeito para este noir gay, que, não fosse o carisma do protagonista e o respeito do diretor, ficaria restrito a um festival MIX qualquer. Almodóvar ao “rerereretocar” no universo homossexual e ao apontar o dedo em riste (apesar de dizer o contrário) para a hipocrisia dos sacerdotes católicos se repete. Quem não assistiu a Maus Hábitos e Lei do Desejo pode mesmo compará-lo com o pop Tudo Sobre Minha Mãe. Ele está recontando as mesmas histórias, agora para um público maior. Os fãs antigos torcem o nariz, enquanto Pedro sente o outro lado da moeda. Seus filmes chegam a mais pessoas, mas a originalidade e o próprio estilo estão comprometidos. Olha que ele disse que não faria filmes nos EUA por temer intervenções “artísticas” em suas obras. Até agora não fez, mas aos poucos vem denegrindo o seu patrimônio em prol de outros interesses.

O diretor disse que nesse filme fez uma homenagem à escritora Patricia Highsmith (criadora do personagem Tom Ripley). No entanto, ao invés das sutilezas das tramas de Patricia e do tom irônico dos filmes de Jean Renoir (também citado durante Má Educação), Almodóvar não é nada sutil. Isso ele nunca foi mesmo. Aqui, cenas de sexo entre homens são mostradas sem muitas ressalvas e seguram uma premissa extremamente simples, mas bem amarrada. A trama gira em torno de dois garotos que se apaixonaram na infância e foram separados por um padre pedófilo no colégio interno católico onde viviam. No louco início dos anos 80, eles se reencontram e aí traumas do passado reaparecem. Há, ainda, outras reviravoltas que servem apenas para Almodóvar fazer um exercício sobre metalinguagem e impressões pessoais, com o indiscutível talento de sempre.

Desta vez, ele usou o galã mexicano Gael García Bernal como centro de todas as intrigas (quase todas movidas pelo desejo), e o latino-americano não faz feio. Com exceção das cenas em que está como a travesti foi bem convincente. Bernal tem charme e carisma, tanto que já é assediado pelos grandes estúdios e se não tomar cuidado vai acabar como seu personagem em Má Educação.

O padre Manolo (Daniel Jiménez Cacho) e o senhor Berenguer (Lluis Homar) são a prova de que o desejo imediato pode suplantar qualquer resquício de razão e fazem uma perfeita alegoria à fragilidade humana. Agora, o alter-ego de Almodóvar no filme, o cineasta Enrique Goded (Fele Martínez), tenta ser a lucidez óbvia diante de comportamentos movidos apenas pelo desejo ou pela ambição. Em alguns momentos acaba cedendo, mas nunca perde a razão. A lucidez em meio ao caos. Pois é, não sei se o espanhol é um gênio ou apenas um oportunista, mas é fácil perceber que o cinema mainstream está mais ousado, enquanto a turma indie perdeu um forte aliado. No fim, o saldo artístico acaba sendo negativo.

Ponto Alto: a interpretação na medida certa de Fele Martinez.

Ponto Baixo: a apresentação musical de Gael como travesti.

10 de fevereiro de 2006

Paixão à Flor da Pele


Cópia americana de filme francês recente. Uma historinha de amor, muito meia-boca, que para fugir do tradicional tenta confundir o espectador no início da trama com um vai-e-vem forçado no tempo. Personagens tão quadrados e datados como os do desenho animado. O filme tinha tudo para ser uma bomba, mas nem tudo é perda de tempo! Tudo bem, Paixão à Flor da Pele é esquecível e previsível como quase todos os personagens da trama. Quase todos, pois a exceção é a gatinha charmosa Rose Byrne. A australiana é o ponto alto do filme. Só Josh Hartnett pra não perceber como aquela menina é incrível – e dá de mil na morna Diane Kruger. Até o coadjuvante Matthew Lillard, em papel ingrato, percebe isso! Mas como o galã tem de ser alguém com aquele ar de menino perdido, o centro das atenções tem de ser Hartnett. Por isso é tão fácil não gostar do cinemão!

Para provar minha tese, basta recorrer ao original L`Appartement (1996). Filminho também bem mais ou menos não fosse a presença de Vicent Cassel e Monica Bellucci nos papéis principais. Eles têm química e são realmente interessantes. Cassel é um cara muito mais intrigante que o previsível Hartnett. Comparar a alemã aguada Kruger com Bellucci é pecado. A única personagem que se destaca na versão americana é mesmo a de Rose Byrne, que dá de mil na atriz e cantora francesa Romana Bohringer, a vilã na versão original. Para quem não lembra de Byrne, ela foi a amante de Brad Pitt em Tróia. Lembrou?! Pois é, aqui tentaram deixá-la feia Pois, logicamente, ela deveria se deixar ofuscar por Kruger, que, tirando a beleza, não tem nada demais. Duas cenas de Byrne merecem destaque: o choro no camarim e a sedução no apartamento. Não falo apenas da atriz, mas a personagem é, sem dúvida, a única com um traço verossímil de complexidade.

A trama é esta: o jovem executivo Matthew (Harnett), agora noivo, volta à sua cidade natal, Chicago, e tenta se reaproximar de mulher por quem foi apaixonado. Ele simplesmente não vai a uma importante viagem de negócios na China, pois acredita ter uma pista que o leve ao seu antigo amor. Matthew é obcecado por Lisa (Kruger) e entre flashbacks, que explicam a relação dos dois no passado, vai tentar encontrá-la.

No meio da trama, aparece a charmosa Alex (Byrne), dizendo se chamar Alice. Alex é uma paquera de Luke (Lillard) amigo e confidente de Matthew. A garota seduz Matthew, e parece ter uma série de pecados que remetem à época do namoro entre Alice e Matthew. E há até versões do mesmo episódio sobre o ponto de vista de personagens diferentes – mais uma vez Rashomon faz escola. Entretanto não dá pra se animar muito, além da falta de empatia dos protagonistas, o roteiro tem muitas falhas, o que compromete significativamente o resultado final.

Um questionamento moral chama a atenção no filme. O casal principal acha que o amor que sentem um pelo outro justifica qualquer atitude egoísta. Porra, Matthew está noivo de uma garota que realmente gosta dele e está pouco se lixando para os sentimentos dela – não demonstra um pingo de remorso com atitudes tão mesquinhas. Alex, por sua vez, é culpada por ter jogado pesado para conquistar o que queria...Ela é a vilã só por ser mais forte que a passiva, insegura e ingênua Alice. Quer dizer que alguns são culpados por lutarem pelo que desejam, enquanto outros têm seus atos perdoados, pois, afinal, são motivados pelo amor verdadeiro?! Isso que é dois pesos, duas medidas.

Infelizmente tudo é mesmo muito óbvio. Ganha um doce quem disser o lugar do desfecho da trama. Pensa um pouquinho - comédia romântica de Hollywood. Ganhou um doce quem falou aeroporto. Olho no olho e lá vem a música pop, neste caso uma boa música – The Scientist do Coldplay. E é isso. Um detalhe - caso o protagonista não fosse tão previsível se apaixonaria por Alex. Aliás, cair de amores por uma vilã tão deliciosamente maquiavélica e, apesar de tudo, frágil e sensível não é tarefa difícil. A lanterna dos afogados no meio de tanta obviedade.

Ponto Alto: Matthew Lillard é um ator carismático e não faz feio.

Ponto Baixo: tratar o público como idiota explicando cada ação pra não deixar ninguém confuso. Em um momento, o personagem invade um quarto de hotel, mas acaba adormecendo – lá vem um horrendo flashback informando que a noiva tinha lhe dado soníferos. Deixa o povo pensar!

Ao Mestre, com Carinho


- Jesus Franco Manera nasceu em 12 de maio de 1930 em Madrid.
- Primeiro filme foi “Tememos 18 anos”, realizado em 1959.
- Compôs a trilha sonora, foi o cinegrafista e também editor de vários de seus filmes.
- Orson Wells viu alguns trabalhos de Franco e o chamou para ser o diretor da segunda unidade de “Campanadas a Medianoche”. Isso foi em 1965.
- A música do cult “Vampiros Lesbos” foi usada em Jackie Brown.
- Nos anos 70, foi considerado pelo Vaticano, juntamente com Luis Buñel, um dos mais perigosos expoentes do cinema.
- Fã de jazz, usou, entre os mais de 30 pseudônimos, nomes de jazzistas falecidos.
- Ainda está na ativa. Seu último filme é Snakewoman, com a participação de Lina Romay.

Sobre o cinema atual, com a palavra tio Jess: “Na minha opinião, o cinema é uma questão de sentimento e alma, e eu não sinto a alma dos atores do cinema moderno. Às vezes os atores não são bons, mas conseguem dar algo, um cunho pessoal. Onde estão os olhos dos atores feitos em computador? Na minha opinião o mais importante em cinema são os olhos”.

Barbed Wire Dolls

O improviso é uma arte. A máxima é leviana, mas pode ser levada ao pé da letra quando o assunto é Jess Franco. Com quase duzentos filmes no currículo, o controverso cineasta espanhol sabe como ninguém (e ninguém mesmo) driblar os orçamentos limitados de suas produções. A criatividade sempre foi seu maior talento. A iluminação é deficiente, vai ficar granulado. “Ótimo, isso é estilo”. O tripé quebrou, vamos de câmera na mão. “Beleza, era assim que eu queria”. Ele também tinha um senso estético formidável, talvez herança da sua formação musical. Com tantos recursos “estilísticos”, usados hoje em centenas de filminhos descolados, pode-se dizer que Franco foi um visionário. Ele alega que foi o precursor do Dogma, isso lá em 1975, com Barbed Wire Dolls. A julgar pelas técnicas empregadas na produção, quem pode ir contra o mestre. Lars Von Trier e sua turma devem apenas abaixar a cabeça.

O apelo comercial pelo sexo ou violência também são marcas registradas deste “gênio” do camp. A tática negocial era simples, se a idéia anterior deu certo vamos usá-la novamente com um toque a mais. Uma nudez a mais, um sangue a mais. E foi assim mesmo. Toda a trajetória do cineasta foi pautada pelos recursos paupérrimos com produções que visavam somente ao lucro. Neste caso, o dinheiro era revertido para novas produções, um compulsivo assumido na arte de fazer cinema.

Um marco na trajetória de Franco é Barbed Wire Dolls. Além do início da famosa parceria com o produtor suíço Erwin C. Dietrich, o filme tem Lina Romay como protagonista. Aqui vai uma observação bem pessoal, Romay tinha charme e no início a cara de ninfetinha foi um achado, mas compará-la a musa anterior, Soledad Miranda, é pecado. Soledad... Bem, Soledad Miranda é uma das criaturas mais bem acabadas que já tive o prazer de ver (em tela pequena, é claro) na vida.

Mas o assunto é Barbed Wire Dolls. O filme é bem melhor que qualquer WIP (Women In Prison) mais apelativo que Franco veio a fazer depois. Love Camp e Women in Cellblock 9 são mais fortes, tem mais sexo, mas não tem o charme de Barbed. A trama gira em torno de Maria da Guerra (Lina Romay, lembrando uma jovem Fernanda Torres) mandada a prisão perpétua por ter matado o pai que tentou estuprá-la. A prisão é uma fortaleza em uma isolada ilha tropical e é vigiada por homens e mulheres em uniforme verde-oliva. Neste cenário, Maria vai sofrer e presenciar todo tipo de barbaridades. Cansada, acaba matando um doutor e fugindo com mais duas amigas: Bertha (a bela Martine Stedil) e a retardada Rosário (Beni Cardosi). Uma curiosidade, em Island Women de Erwin C. Dietrich, a cena da fuga é idêntica, o detalhe é que no filme de Dietrich as prisioneiras estão completamente nuas.

De resto, muita, mas muita nudez e algumas cenas de sexo. A violência, diga-se de passagem, é ousada na intenção e contida na execução. Há ainda uma diretora de prisão bem malvada (a belga Monica Swinn, em atuação pra lá de exagerada) que comanda as torturas e usa algumas prisioneiras pra saciar seu apetite sexual. O uso constante de zooms (uma das marcas de Franco) e uma cena lúdica com Franco, como o pai de Maria, fazem deste Barbed Wire Dolls um clássico absoluto e obrigatório para os apreciadores do sleaze. Como se não bastasse, há a presença de Eric Falk, como o cruel Nestor, e belas guardas com os seios a mostra. Obrigado, Tio Jess!

Ponto Alto: a trilha sonora é, digamos, apropriada.

Ponto Baixo: as cenas de fuzilamento ficaram fake demais. E olha que estamos falando dos padrões Franco de qualidade.

9 de fevereiro de 2006

Cidade Baixa

Walter Benjamim, mais famoso representante da escola de Frankfurt, diz em seu A Era da Reprodutibilidade Técnica que a áurea do original é o que diferenciava a obra de sua mera reprodução. Seguindo essa linha, Cidade Baixa nada mais é que a reprodução cuidadosa de uma série de referências famosas. O filme é transgressor, marginal e até chocante em alguns momentos. Tem Zé Dumont em uma ponta inspirada e um trio carismático de protagonistas. Cidade baixa faz ainda um retrato cru dos miseráveis e tem um triângulo amoroso capitaneado por uma mini Sônia Braga. Assim, o filme tinha tudo para ser a referência na retomada do cinema marginal brasileiro, mas não o é, justamente, por não ter um frame de originalidade. O cinema marginal e a boca do lixo, passando até pelo superestimado cinema novo, já haviam contado esta história antes e com mais propriedade.

Um foco visceral na vida daqueles a quem os sociólogos chamam de invisíveis sociais, dos que estão literalmente a margem do convívio em sociedade e que vivem de pequenos crimes ou de bicos. Desde o neo-realismo italiano do pós-guerra vemos isso. Nelson Pereira dos Santos abordou o assunto de maneira ímpar com Rio 40 Graus, isso lá em 1955. O amor e o sexo como formas de redenção, a única esperança na vida miserável é poder ter alguém sob controle e se dar a alguém. Bruno Barreto, esse mesmo que hoje dirige enlatados nacionais e importados, abordou com propriedade esse tema no excelente representante do cinema marginal Amor Bandido.

Cinema cru, câmara na mão e close nos olhos apenas parece original pra quem nunca ouviu falar do delicioso cinema camp feito pelos paulistas da boca do lixo e pelos europeus sem dinheiro nos anos 70. Triângulo amoroso, com amigos-irmãos nutrindo aos poucos um ódio mortal não só pelo objeto de desejo, mas também por medo de perder o companheiro e que desta forma caminham inevitavelmente para o final trágico ou não tão trágico assim. Tudo bem, ninguém nunca viu isso em novela!

Apesar de não ser original, o filme é feliz em seu aspecto técnico. Tudo é praticamente impecável. A parte pobre e arquitetonicamente bela de Salvador tem aquele tom documental indispensável ao sucesso da produção e os atores, praticamente todos, estão muito bem. Além do já mencionado Zé Dummont, o Dois Mundos, o ator é homônimo, merece destaque – ele faz aquele tipo mal caráter, oportunista e explorador, com um toque de humor que rouba todas as cenas em que dar o da graça. O roteiro escrito pelo diretor Sérgio Machado e por Karim Ainouis, este trabalhou com Lázaro Ramos em Madame Satã, apesar da falta de originalidade tem boas ”sacações”, como a briga dos galos branco e negro profetizando o final do filme, logo no início da projeção. Os elementos da trama - sangue, suor e lágrimas – expressos em uma boa fotografia estão na medida certa. A música, no entanto, não é deslumbrante, e se não faz feio na tentativa de dar o toque baiano-africano por meio de muita percussão não compromete o resultado.

A dupla central, formada pelos cúmplices Lázaro Ramos e Wagner Moura, esbanja carisma e tem uma autenticidade que só deveria vir mesmo de dois amigos. Engraçado também é ver como a dupla tem necessidade de manter uma imagem meio outsider, apesar da imagem dos rapazes já estar inegavelmente associada a constelação global. A sobrinha de Sônia Braga, Alice, faz uma Karinna (com dois “n”) de caracterização perfeita. Ela usa muito vermelho, o que ajuda a ressaltar a sensualidade barata e os movimentos são de uma prostituta de cabaré de beira de estrada. Enfim, Cidade Baixa é acima de regular, mas definitivamente você já assistiu a algo, no mínimo parecido, antes.

Ponto Alto – sexo selvagem entre o personagem de Lázaro Ramos e Alice Braga em uma viela escura de Salvador.

Ponto Baixo – a participação de Zé Dumont é pequena demais!

Carrie, a Estranha


O sucesso comercial de Stephen King não esconde suas imensas limitações artísticas. Isso, porém, não impede e funciona até como incentivo para que suas obras fáceis sejam adaptadas aos milhares para o cinema e televisão. Como não podia ser diferente, o resultado é assustador, no mal sentido. Entretanto, há exceções. São obras como O Iluminado de Kubrick e Christine de Jonh Carpenter - mérito integral dos cineastas e não do fio de trama puxado por Stephen King. No meio dessas exceções, há Carrie, a Estranha, que não por acaso ganhou status de cult. O filme concorreu a dois oscars (atriz e atriz coadjuvante, Spacek como Carrie e Piper Laurie, no papel da mãe repressora) e ganhou alguns prêmios, além de ter sido um sucesso de bilheteria. Mas não é esse reconhecimento comercial que faz de Carrie um filme acima da média, e sim a coragem em se assumir como uma obra baixo astral e angustiante. Além, é claro, de abordar com propriedade o universo feminino.

O filme é extremamente feminino (não feminista) ao centrar sua trama nos conflitos de mulheres e ao apresentar homens como meros instrumentos. Os “machos” simplesmente não têm importância, não tomam nenhuma atitude, seja o professor de literatura efeminado ou o galã, que apenas personifica a ascensão social. A passividade masculina incomoda. O momento em que a maquiavélica Chris Hargenson (Nancy Allen) convence o namorado Billy Nolan (John Travolta) a participar de uma sórdida brincadeira usando de recurso sexual é um reforço da fácil manipulação do sexo masculino.

Direção eficiente de um jovem Brian de Palma e uma enxurrada de possíveis astros e estrelas dão o tom certo a trama da menina com poderes de telecinese. Soma-se a isso o estilo setentista em pleno auge, o filme é de 1976. Cabelo, carros, gírias, maquiagem, roupas – enfim, tudo lembra aquela época. Tanto que assistir ao filme em DVD remasterizado acaba sendo um aspecto negativo, pois Carrie é pra ser visto em VHS usado.

A trama mostra a menina insegura, motivo de chacota na escola, simplesmente, por ser introvertida. Pausa para a interpretação perfeitamente melancólica de Sissy Spacek (na época com 27 anos) e o uso adequado de seus grandes olhos azuis. Carrie White também traz na mãe Margaret (Piper Laurie), fanática religiosa e protetora, outro fardo. Escrito por Lawrence D. Cohen (especialista em adaptar obras de Stephen King), o roteiro não é nada sutil em mostrar o “talento” da menina. Em menos de 20 minutos de projeção, Carrie já faz uso da tecinese em três situações e parece controlar com perfeição absoluta seus poderes. Bem, o lance é que as populares da escola recebem uma punição severa da professora de educação física, Srta.Collins (Bett Buckley), pelas zombarias que fazem com Carrie. A mimada Chris não aceita e acaba sendo severamente punida com a não-participação no aguardado baile de sêniors. Resultado: brincadeira brutal pra cima de Carrie. Por fim, a inevitável vingança da menina no baile.

Além de Carrie, uma personagem secundária tem destaque - Sue Snell (Amy Irving). A menina é uma descolada bem resolvida e com família estável que se sensibiliza com a inocência de Carrie e oferece o namorado bonitão Tommy Ross (William Katt) como parceiro para a garota no baile. A motivação de Sue parece ser cruel, mas depois descobrimos que é ato de puro altruísmo. Mal estruturado, uma vez que a atitude do casal não se encaixa com o posicionamento desleixado e arrogante dos personagens no início do filme. Estamos diante de personagens complexos e bem elaborados com motivações oscilantes como nos romances de autores russos? Pouco provável – Carrie é um excelente filme e ousa em vários momentos, mas é cinema americano baseado em obra de Stephen King! Fico com a opção de que seja um falsete do roteiro para humanizar mais as personagens da trama.

A cena inicial e a apresentação dos créditos, por sua vez, são atrevidas em mostrar a nudez frontal das garotas no vestiário feminino, a alegoria é lúdica. O contraste com a zombaria, destacando risadas sarcásticas em primeiro plano, é um ponto forte do filme. Aliás, no início, a ignorância de Carrie em lidar com a primeira menstruação é desconfortante. Ela fica no chuveiro, confusa e angustiada com a situação. No pós-clímax, Carrie volta a se lavar do sangue agora impregnado em todo o corpo. A condição de mulher extrapolou a da menina, então ela se lava e volta a triste, mas confortável e inocente posição inicial. Enfim, uma obra bem acabada e que proporciona reflexões que vão além do maravilhoso desbunde visual no massacre no baile.

Ponto Alto – as referências a Hitchcock, principalmente Psicose, que vão da música à composição de personagens e cenários. O colégio chama-se Bates High.

Ponto Baixo – seqüências engraçadinhas, como a que um personagem experimenta com amigos a roupa do baile, vão de encontro ao clima pesado da produção.

Possessão



Parafraseando o mais picareta dos paladinos brasileiros: Isabelle Adjani desperta em mim, os instintos mais primitivos. A francesa é um enigma, tem traços perfeitos e transmite uma sensação de urgência iminente. Vai fazer a vítima se apaixonar, usando não a sensualidade, e sim a fragilidade que pede proteção. Depois, o desprezo frio e implacável. E em Possessão, ela usa deste poder com ênfase nada eufêmica. Os surtos são incontroláveis e os momentos de fraqueza de uma intensidade comovente.

Possessão é obra do polonês Andrzej Zulawski e causou furor nos festivais de cinema, inclusive no Brasil, ao abordar a estranha relação de uma dona de casa de Berlim com uma criatura horrenda. A estória de Anna (Adjani) vai além de um caso de adultério e propõe um estudo altamente complexo das motivações e insatisfações humanas. Apesar de casada com o ausente Mark (Sam Neill) e ter o escape do amante Heinrich (Heinz Bennet), Anna está insatisfeita. A esposa expressa sua infelicidade em crises coléricas – tudo em tom forte, retratado por uma fotografia fria. Mark lança mão até de um detetive e este descobre que a esposa divide um apartamento com um possível amante. Mark ainda se envolve com a professora do filho, a suave Hellen (Adjani, novamente). Enquanto isso, o bizarro monstro vai se metamorfoseando em homem e Anna sente a transformação por meio de convulsões e ataques de ira. O final é arrebatador.

As interpretações são várias e se confundem neste universo assustador e profundamente angustiante proposto por Zulawski. O filme é deprimente, pois não permite concessões. Tudo é visceral, urgente, desesperado. Adjani se entrega e se desgasta na dupla Anna/Helen. Mark, por sua vez, sente-se culpado e procura no abandono da esposa uma motivação pra continuar de pé, fato que fica claro na insegurança que demonstra ao lidar com a professora do filho. Há um embaraço de sentimentos e personalidades, que machucam não apenas o personagem de Neill, mas o próprio espectador.
O ritmo de Possessão é lento e desconfortável, compensado por momentos de intensidade lacerante. A aparência bizarra da criatura e momentos de pura agressão visual esfregam na cara do espectador a urgência em mandar uma mensagem desesperada. Uma insatisfação da Europa pós-guerra (não à toa, a trama se passa em Berlim) sem esperança e insatisfeita com a monotonia de vidas medíocres. Como uma obra de arte bem estruturada e que simplesmente não acaba em si mesmo, Possessão permite uma infinidade de alegorias (homem com meias cor-de-rosa). É preciso talento pra se permitir tantos abusos. A ressalva fica por conta de que o filme é para ser apreciado e analisado a posteriori, no momento da projeção o impacto é direto no estômago.

Ponto Alto: a interpretação desajustada de Heinz Bennet, que faz um alemão efeminado que vive com a mãe. O amante mais ambíguo possível. Até o suspiro de Possessão é carregado.

Ponto Baixo: Sam Neill fez sucesso demais depois do filme. Sua cara de Jurassic Park alivia, infelizmente, a áurea transgressora da produção.

8 de fevereiro de 2006

Amarelo Manga

O filósofo e comunista italiano Antônio Gramsci, que influenciou boa parte dos estudiosos de comunicação do século XX, defendia uma cultura pregadora de transformações profundas, uma cultura revolucionária, e não simplesmente uma mantenedora do status quo vigente. Segundo esse conceito, o filme de Cláudio Assis não passa de uma grande enganação.Amarelo manga é forte, nauseante, escatológico, angustiante e deprimente. Tudo bem, o pernambucano consegue chocar o espectador, mas uma pergunta não me sai da cabeça: com qual propósito? Simplesmente nenhum, apenas o constrangimento puro e simples. Os elementos são simplesmente jogados na cara do telespectador; não vemos nenhuma alternativa, nem ao menos um viés de esperança ou de uma indignação social plausível.

A trama, escrita por Hilton Lacerda, se passa em Recife. Vários personagens - quase todos, exceção feita à dona do bar (Leona Cavalli), estereotipados – se cruzam e se relacionam em um ambiente colorido e tumultuado. Eles têm suas taras e desvios de comportamento reprimidos ou explicitados da maneira mais apelativa possível. “O pudor é a forma mais inteligente de perversão” - o diretor diz isso em uma pontinha, e vc interpreta da forma que for possível. Temos um taxista necrófilo, uma evangélica reprimida, um açougueiro bruto, um padre incrédulo, uma asmática nauzeabunda, um homossexual maquiavélico, e por aí vai. Apresentações feitas, o filme vai apenas trabalhando com esse material humano por meio de um exercício de estilo do mais puro mau gosto.

Durante a projeção, só consegui lembrar de Saló – 120 dias em Sodoma, de Pasolini. A proposta de exagerar no mau gosto, de apresentar situações absurdas e nojentas já foi vista na obra do polêmico cineasta italiano. No entanto, apesar de Saló ser muito mais agressivo, vemos uma crítica contudente às formas de dominação e poder exercidas sobre a sociedade italiana em uma época determinada. Mas, e Amarelo Manga ? Cláudio Assis disse que o filme levou muita gente da periferia de Recife ao cinema (fizeram promoções a preços populares) – iniciativa legal, mas deveriam fazer isso não com essa bomba, e sim com algum documentário de Eduardo Coutinho. Não acredito, mas caso a proposta tenha sido incomodar os governantes, a produção também não obteve êxito. Reza a lenda que, em uma sessão vip no Palácio da Alvorada, Lula caiu na risada com as situações apresentadas pelo seu conterrâneo.

O filme varreu praticamente todos os prêmios importantes dos festivais de Ceará e de Brasília e levou até alguns prêmios internacionais direcionados ao cinema latino-americano. Isso prova apenas que Amarelo Manga acertou, ao menos do ponto de vista comercial, na sua proposta. Pessoas de classe média encheram as salas de cinema e disseram ter visto um retrato verdadeiro e expressivo da periferia de uma miserável metrópole nordestina. Não se dão conta que a realidade apresentada no fime é inverossímil, pois vivem tão distante daquilo quanto o cidadão de um país desenvolvido. É o mesmo que acontece com o norte-americano que assiti ao Central do Brasil (gosto do filme de Walter Salles). Ele sai, de certa maneira, aliviado de viver longe daquilo, e ainda acha que fez um dever humanitário ao “presenciar” duas horas de tanta miséria e sofrimento.

Apesar de tudo, o longa tem pontos positivos, caso da fotografia - assinada por Walter Carvalho, que ganhou o prêmio do Festival de Cinema Brasileiro de Miami (hein?). Walter retrata os contrastes de cores em uma Recife explosiva e suja. Alguns atores também conseguem ser sair bem, caso de Dira Paes, Natchergaele e Leona Cavalli. Achei Chico Díaz desmotivado e o personagem de Jonas Bloch tão detestável, que não consegui enxergar brilho na interpretação do veterano e sempre competente ator. Cito ainda a trilha sonora (bem pop, ou o movimento mangue beat ainda não foi abraçado pelo mercado?), como outro fato positivo. E só. Esse Amarelo Manga é amarelo demais para o meu gosto.

Ponto Alto: Dira Paes. Bonita e talentosa.

Ponto Baixo: a tentativa de chocar com a morte dos animais no matadouro.